Em meados dos anos 60 do século XX, Marshall McLuhann publicou o livro Understanding Media: The Extensions of Man, no qual a expressão “o meio é a mensagem” procurava fixar a ideia de que o meio é um elemento importante da comunicação, e não somente um canal de passagem, ou um veículo de transmissão. Nunca como hoje, a migração da metáfora se tornou tão óbvia. O vírus é a mensagem!
Quando, em 31 de dezembro de 2019, uma pneumonia de causa desconhecida detetada em Wuhan, China, foi relatada pela primeira vez ao Escritório da OMS na China, começou uma nova etapa na nossa história social contemporânea. Nada será como dantes. A pandemia do COVID-19 colocou de novo a humanidade naquela fronteira, sempre instável, entre natureza e cultura que o nosso imaginário científico supunha já definitivamente controlada. Voltámos a ter consciência da natureza em nós. Voltámos a ter consciência da desadequação social dos nossos comportamentos coletivos e do impacto que estes produzem na Arca de Noé em que estamos confinados.
A pandemia do COVID-19 colocou de novo a humanidade naquela fronteira, sempre instável, entre natureza e cultura que o nosso imaginário científico supunha já definitivamente controlada. Voltámos a ter consciência da natureza em nós.
O vírus é a mensagem. As formas de organização comunitárias (Gemeinschaft) reduziram-se por estes dias ao mínimo fundamental e não vão além da nossa casa, da nossa rua ou da nossa cidade enquanto as relações societárias (Gesellshaft) não vão muito além das fronteiras dos interesses nacionais.
Ferdinand Tönnies (1855-1936), o autor original desta oposição binária Comunidade-Sociedade, atribuía já ao capitalismo a causa principal de disrupção das formas de integração social da Gemeinschaft e acreditava que as formas sociais típicas da Gesellshaft contribuiriam para uma desumanização do Homem. Ao olhar para o mundo à nossa volta, para a desigualdade social e económica que o capitalismo mais liberal nos legou, para o nosso próprio estilo de vida consumista, insustentável e, porque não dizê-lo, irracional, percebemos que não é possível continuar no mesmo trilho. Perdemos a Comunidade sem ter sabido construir uma ideia solidária de Sociedade.
O distanciamento social, antecâmara da brutal grande depressão dos anos 20 do século XXI, criou condições para o aparecimento de uma nova fronteira entre ricos e pobres matando a esperança de uma vida sustentável para tantos homens, mulheres e crianças do nosso tempo. Há os que querem e podem ficar em casa, trabalhar a partir de casa, manter a esperança em casa e, depois, há os que não têm casa, não têm trabalho e, pouco a pouco, vão perdendo a esperança. Com a brutal quebra de rendimentos nas economias mais avançadas é de esperar uma atuação mais egoísta na dádiva e na partilha e o abandonar de quem, do outro lado da rua, ou do outro lado do mar, precisa, mais do que nunca, de uma voz que garanta solidariedade e fraternidade.
Na verdade, o vírus é a mensagem gritada sobre a nossa incapacidade de conviver com as outras espécies do planeta, sobre o nosso modelo económico que exaure hoje recursos escassos sem pensar nas consequências futuras. O vírus é a mensagem gritada sobre as possibilidades de encetarmos, em conjunto, um caminho novo para uma sociedade global, mais justa e menos desigual. Uma sociedade com menos ter e mais ser. Se o vírus é a mensagem, os destinatários somos todos nós.
Há os que querem e podem ficar em casa, trabalhar a partir de casa, manter a esperança em casa e, depois, há os que não têm casa, não têm trabalho e, pouco a pouco, vão perdendo a esperança.
O medo do futuro – que agora sentimos – é uma alteração da perspetiva coletiva de uma futurização (a ideia que temos do futuro, como lhe chamou Niklas Luhmann) que mudou de paradigma de forma abrupta. O futuro não será o que pensámos quando pensávamos no futuro. Não se trata de anunciar o fim do capitalismo ou da globalização (porque não se aproxima uma qualquer revolução), mas de imaginar que os nossos comportamentos coletivos podem alterar o ambiente em que convivemos. O vírus é a mensagem de que um mundo melhor é realmente possível, mas somente se quisermos esse compromisso, esse novo contrato social. Trata-se de sonhar com um Antropoceno menos destrutivo, com mais cooperação com a natureza e uma menor competição entre nós. Diminuímos o ritmo e o mundo ficou menos poluído. Está tudo dito. O vírus é a mensagem.
Esta nem sequer é a primeira vez em que, confrontados com um novo vírus, fazemos menção de alterar o caminho (sem que, todos estes anos passados, possamos dizer que o tenhamos feito). Já em 1987, na senda do VIH, na encíclica Sollicitudo Rei Socialis, o Papa João Paulo II procurava insistir no cumprimento do dever moral da solidariedade entre os povos: “somos convidados a rever o conceito de desenvolvimento, que não coincide certamente com o que algumas vezes se faz, limitando-se a satisfazer as necessidades materiais, mediante o aumento dos bens, sem prestar atenção aos sofrimentos da maioria e fazendo do egoísmo das pessoas e das nações a principal motivação. (…) Num mundo diverso, dominado pela solicitude do bem comum de toda a humanidade, ou seja, pela preocupação com o «desenvolvimento espiritual e humano de todos», e não com a busca do proveito particular, a paz seria possível, como fruto de uma «justiça mais perfeita entre os homens»” (SRS 10).
Ao terminar a encíclica Sollicitudo Rei Socialis, João Paulo II, procura implicar-nos nesta jornada em direção a um mundo melhor: “Cada um de nós é chamado a ocupar o próprio lugar nesta campanha pacífica, que há-de ser conduzida com meios pacíficos, para alcançar o desenvolvimento na paz e para salvaguardar a própria natureza e o mundo ambiente que nos rodeia” (SRS 47). O vírus é a mensagem. O vírus é a mensagem.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.