O valor da sobriedade: sugestões para uma vida mais coerente

As consequências energéticas e humanitárias de um modelo centrado no consumo do maior número de bens pelo menor preço possível são insustentáveis. Precisamos de despertar deste vórtice, e revalorizar a sobriedade.

Em reação ao meu último artigo sobre o Destino Universal dos Bens, surgiram alguns comentários no Facebook, por um lado, acusando o artigo de falta de realismo e de desconhecimento em relação à ciência económica, por outro, manifestando vontade de que o texto fosse mais longe e sugerisse caminhos concretos de mudança e coerência na vida quotidiana.

Em relação à primeira crítica, não posso senão “enfiar a carapuça”. De facto, não percebo de economia e escapam-me os eventuais virtuosismos do sistema. No entanto, nunca foi minha intenção adotar esse ponto de vista. Não estou a discutir os méritos de sistemas macroeconómicos concretos, mas sim a olhar o mundo, as alternativas e os deveres do cristão como opção primária, anterior a qualquer lógica de crescimento.

Quanto à segunda sugestão, vou tentar responder-lhe no artigo de hoje, explicando melhor quer as ditas opções concretas que todos temos ao dispor no quotidiano, quer os valores que as fundamentam e justificam, mesmo quando a lógica do mundo nos sugere como melhores outras direções.

Comecemos pela constatação óbvia de que o nosso planeta é uma esfera. Por definição, é finito e limitado. Por mais que as técnicas agrícolas melhorem e se inventem novos modos de reciclar parte dos materiais que usamos, nunca poderemos consumir desenfreadamente sem que isso tenha efeitos nocivos sobre a nossa “Casa Comum”. E se as consequências energéticas de tudo o que fazemos pesam na fatura climática, também as consequências humanitárias de um modelo centrado no consumo do maior número de bens pelo menor preço possível pesam no desequilíbrio entre ricos e pobres. Se eu compro roupa na Primark ao preço da chuva, há alguém numa “sweatshop” algures no Bangladesh a garantir que a empresa não fica a perder dinheiro apesar das promoções. Este vídeo mostra bem as consequências do consumo irresponsável. O vídeo é de 2007 mas, infelizmente, nada mudou na última década.

A lógica que norteia as nossas sociedades é a lógica do consumo. Estudamos para um dia trabalhar e trabalhamos para poder consumir. Há toda uma indústria bilionária (o marketing) a criar em nós falsas necessidades e a convencer-nos desde crianças de que a nossa felicidade depende daquilo que possuímos (o capítulo “Basic training” do documentário “The corporation” é revelador). Ao longo da vida vamos acumulando objetos (roupa, sapatos, serviços de pratos e copos, bibelots, livros) dos quais usamos só uma pequeníssima parte e que até nos vão obrigando, quando podemos, a mudar para casas maiores, a ter arrecadações e garagens, espaço para guardar aquilo de que poderíamos perfeitamente abdicar. É sempre interessante ler a opinião que, já no final do século XIX, tinha Tuiávii, o chefe de uma tribo na Polinésia acerca do modo de vida ocidental, que ele observou aquando de uma visita à Europa:

“O Papalagui [= o homem branco] é pobre porque está obcecado pelas coisas. Já não pode passar sem elas. Quando ele, das costas da tartaruga, faz um instrumento para alisar os cabelos (depois de lhes aplicar óleo), logo de seguida faz ainda uma pele para esse instrumento, um pequeno baú para pôr a pele e mais um baú grande para pôr o baú pequeno. Há baús para os panos, para os tecidos de cima e os tecidos de baixo, para os tecidos de limpar o corpo, tecidos para cobrir a boca e outros tecidos mais, baús para pôr as peles para as mãos e as peles para os pés, baús para o metal redondo e para o papel forte, baús para as provisões e para o livro santo, numa palavra: para tudo quanto há. De todas as coisas faz ele inúmeras coisas, quando uma só bastaria. […] Sabeis, irmão, que eu não minto e que vos digo toda a verdade tal como a vi, sem tirar nem pôr. Crede que há na Europa homens que encostam a arma de fogo à sua própria fronte, pois preferem deixar de viver do que viver sem coisas.” (Tuiávii de Tiavéa, O Papalagui)

Faz-nos falta este olhar distanciado perante a vida que levamos, tão necessitada de coisas materiais e tão distante da simplicidade evangélica. Precisamos de despertar deste vórtice, e revalorizar a Sobriedade. Considerar que mais do que o “crescimento sustentável” precisamos é de decrescer. Devolver à Coerência o seu papel como barómetro das nossas opções quotidianas.

Se optarmos por uma vida mais frugal, veremos como, depois de uma eventual fase de adaptação inicial, a sensação é de libertação.

Se optarmos por uma vida mais frugal, veremos como, depois de uma eventual fase de adaptação inicial, a sensação é de libertação. A esse respeito, diz-nos Andrea Saroldi, um dos defensores do movimento da Economia Solidária em Itália:

«Talvez de início nos assuste a ideia de “ter menos”, mas na realidade estamos a falar de “viver melhor”: com mais relações, mais tempo, mais saúde, mais alegria. Uma família europeia possui em média 10.000 objetos; cada um destes requer tempo para ser escolhido, comprado, arrumado, rearrumado, limpo, protegido, arranjado e substituído. A não ser que sejamos colecionadores de objetos, tudo isto é tempo a menos que temos à nossa disposição para fazer as coisas de que realmente gostamos.

Está demonstrado que, acima de um determinado limite, a quantidade de bens que possuímos é inversamente proporcional ao grau de satisfação que nos dão. Porque a felicidade nasce da profundidade e do significado de uma experiência, não da sua extensão.» (Andrea Saroldi, Giusto movimento – um guia aos “novos estilos de vida” que se têm vindo a desenvolver em Itália desde os anos 90, infelizmente sem um livro equivalente em português).

E que propostas concretas posso eu dar, então, a quem quiser converter o seu estilo de vida no sentido do consumo responsável? Sem ter qualquer pretensão de ter descoberto a estrada da coerência universal, deixo só algumas sugestões que me parecem alinhadas segundo a dupla intenção de contribuir para um planeta com menos “lixo” (note-se que todos os objetos que compramos, vão ser, mais cedo ou mais tarde, lixo) e para uma humanidade mais solidária.

1) Evitar comprar roupa em primeira mão. O impacto ecológico da produção de vestuário pode ser visto aqui, e o problema do tratamento da roupa descartada às toneladas todos os dias está bem analisado aqui. Para evitar compactuar com isto, basta recorrer:

  • às “heranças” (isto é, vestir os nossos filhos sempre com roupa herdada de familiares e amigos, mesmo que isso implique sermos proativos e escrever uma série de emails às pessoas com os filhos na idade certa, quando vemos que as camisolas e calças das nossas crianças estão a ponto de encurtar, a pedir para nos passarem a roupa que já deixou de servir aos filhos delas. Garanto que este método funciona tão bem que às tantas temos é roupa a mais nos armários);
  • às lojas de roupa em segunda mão para crianças (ex. Kid to Kid);
  • e às lojas de roupa em segunda mão para adultos (ex. Humana).

2) Quando compramos roupa nova, escolher aquela que sabemos ter sido paga a preço justo a quem a produziu. Pessoalmente, prefiro artesãos locais, quer para sapatos, quer para roupa. Nas feiras e mercados encontram-se sapateiros e modistas que fazem roupa linda e original e aos quais podemos pagar justamente. Para roupa mais standard, podemos optar pelo Comércio Justo (embora em Portugal haja poucos pontos de venda) ou por fazer alguma investigação acerca das marcas com códigos de ética mais respeitadores dos direitos humanos (utilizando sites como este, por exemplo).

3) Evitar usar o carro e privilegiar os transportes públicos.

4) Dispensar gadgets e luxos de que não precisamos. Para quê ter o último modelo do iphone se um telefone por um terço do valor tem tudo aquilo que me serve? E já agora: antes de comprar um novo telemóvel, perguntar a todos os que conheço se alguém não terá um telemóvel que não usa e que possa dispensar ou revender (isto para mim já funcionou 3 vezes).

5) Procurar reduzir o consumo de plástico. Posso aproveitar a iogurteira da minha mãe, já com 30 anos, e fazer iogurte em casa? Posso comprar cereais e leguminosas a granel?

6) Dar novo destino ao que não me serve. Praticamente tudo o que temos pode encontrar um novo dono em sites como o OLX ou em grupos do Facebook como “Despachar tralhas”, “Marketplace” ou “Free your stuff”.

7) Arranjar alternativas às prendas que enchem a casa de tralha. No Natal, que tal combinar com a família que só se oferecem prendas com valor afetivo e feitas por nós? Nas festas de anos dos filhos e amigos, que tal juntar a malta numa prenda conjunta e realmente significativa?

8) Verificar regularmente se as nossas opções de consumo podem ser “trocadas” por ações solidárias. Um exemplo: tenho um dinheirinho de parte e posso renovar a cozinha. Mas será que preciso mesmo de trocar os armários? E se o valor que eu ia dedicar à nova decoração, fosse entregue ao JRS (Serviço Jesuíta aos Refugiados)?

Para mais sugestões concretas para as famílias, sugiro este vídeo, em que uma jovem mãe conta com simplicidade as mudanças que implementou no seu quotidiano depois do nascimento do seu primeiro filho. Proponho também a leitura do livro “Viver devagar” de Maria Cordoeiro, mãe de 5 filhos e autora do blog “Sete mais dois” (onde podem encontrar dicas sobre como fazer muesli ou manteiga de amendoim em casa, como nos aproximarmos de uma vida com “desperdício zero”, etc). Para uma fundamentação mais aprofundada destes conceitos de Decrescimento e Sobriedade, sugiro os livros de Serge Latouche disponíveis em português. Boas leituras!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.