Em Inácio de Loiola (1491-1556) e na Companhia de Jesus encontramos uma grande sensibilidade à justiça. Sublinho duas graças especiais na base dessa atenção à justiça. Num artigo recente, abordei a graça que Inácio recebe, respeitante a uma nova mundividência pascal. Neste artigo pretendo abordar a graça que Inácio recebe respeitante à identificação com Cristo doloroso, nos trabalhos da paixão.
Este artigo pretende ser o avesso do outro, já publicado, intitulado “Contemplação para alcançar amor: A Páscoa de Inácio de Loiola”. A “contemplação para alcançar amor” (Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais 230-237), apresenta-nos a mundividência pascal de Inácio de Loiola. Confronta-nos com um mundo em acentuada transformação, em que o próprio Deus se encontra profundamente envolvido, agindo dentro da Criação e da História e querendo também precisar do nosso contributo. O que se espera do exercitante nesta etapa derradeira dos Exercícios Espirituais e de retorno à vida quotidiana é que testemunhe no meio do mundo a omnipotência de Deus que, mediante uma kenosis (abaixamento e esvaziamento), se traduz sucessivamente em justiça, bondade, piedade e misericórdia.
O que se espera do exercitante nesta etapa derradeira dos Exercícios Espirituais e de retorno à vida quotidiana é que testemunhe no meio do mundo a omnipotência de Deus que, mediante uma kenosis (abaixamento e esvaziamento), se traduz sucessivamente em justiça, bondade, piedade e misericórdia.
O que está de facto na origem da mundividência e do modo de proceder de Inácio de Loiola? Ao longo da sua vida Inácio recebe inúmeras graças. Entre elas há duas que se destacam. A iluminação junto ao rio Cardoner (1522), à qual nos referimos no artigo sobre a “Contemplação para alcançar amor”. A outra experiência é a visão de La Storta (1537). Existe uma relação de complementaridade entre ambas. A primeira coloca a tónica no entendimento e a segunda no afeto.
Vale a pena ter um olhar de relance sobre a vida de Inácio desde que foi ferido no cerco de Pamplona (1521). Apenas alguns marcos: conversão durante a longa convalescença (1521); iluminação junto ao rio Cardoner (1522); proibição pela Inquisição de expor matérias teológicas, mais ainda de propor a experiência de Deus, antes de estudar (1527); estudos a tempo inteiro em Paris (1528-1535); visão de La Storta (1537); “deliberação dos Primeiros Companheiros” (1539) que vai conduzir à fundação da Companhia de Jesus (1540).
Mas o que é que sucedeu em La Storta, às portas de Roma, e qual a razão da sua importância? La Storta é por um lado a confirmação antecipada de todo um caminho que conduz à fundação de uma nova ordem religiosa na Igreja e, por outro, representa a fonte que congrega e envia em missão os membros desta nova ordem religiosa.
La Storta é por um lado a confirmação antecipada de todo um caminho que conduz à fundação de uma nova ordem religiosa na Igreja e, por outro, La Storta representa a fonte que congrega e envia em missão os membros desta nova ordem religiosa.
No final da sua vida, Inácio de Loiola confidencia oralmente a sua autobiografia em passeios que dá na companhia de Gonçalves da Câmara SJ. O relato posto posteriormente por escrito é conciso. Podemos distinguir diferentes níveis na visão de La Storta.
Num primeiro nível, Inácio conta que se dirigia para Roma, rogando à Virgem que lhe alcançasse a graça de “ser posto com o seu Filho”. A expressão repete-se por três vezes (Autobiografia de Inácio de Loiola, nº 96). À entrada de Roma, na povoação de La Storta, dentro de uma Igreja, Inácio de Loiola experimenta que esta graça lhe foi concedida: Deus Pai colocava-o efetivamente com Cristo, seu Filho. São Paulo traduz uma graça equivalente com as seguintes palavras: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 19-20). Como consequência, também Paulo poderia dizer: “não há tantos grilhões e cadeias no mundo, que eu não deseje mais por amor de Deus” (Autobiografia de Santo Inácio de Loiola, nº 69).
A respeito desta graça Inácio parece ser reservado e lacónico. Há uma série de detalhes relativos a esta graça que não partilha com Gonçalves da Câmara ou porque não se lembra ou porque não constituem o essencial que lhe fica gravado ou porque sabe que o seu relato vai ficar registado, e retrai-se por pudor e discrição, ou porque a este ponto a primeira pessoa singular dá lugar à primeira pessoa plural e os primeiros companheiros são convidados a completar o relato. Quando Gonçalves da Câmara lhe fez o reparo que Diego Lainez SJ (que acompanhou Inácio na viagem em que ocorreu a visão de La Storta e que sucedeu a Inácio de Loiola como Padre Geral da Companhia de Jesus) acrescenta ao relato outros detalhes, Inácio responde que Lainez é totalmente fidedigno no que conta. Que outros detalhes são esses, também corroborados por Jerónimo Nadal SJ? Este escrito de Nadal tem uma importância acrescida, pois é anterior à morte de Inácio de Loiola.
Entramos num segundo nível desta visão. Jesus Cristo surge carregando a cruz e Deus Pai virando-se para o Filho diz-lhe que quer que Ele receba Inácio de Loiola como servidor. De acordo com este segundo nível, Inácio de Loiola identifica-se com o servidor do Servo de Iahweh. Com efeito, nos Exercícios Espirituais, Inácio propõe ao exercitante a identificação com Cristo pobre, carregado de desprezos, a ponto de ser considerado insensato e louco por Cristo (EE 167). A este respeito poderá ajudar-nos trazer à mente a figura do Messias doloroso patente nos quatro Cânticos do Servo (Is 42; 49; 50; 52). Esta identificação com Cristo doloroso pressupõe o serviço aos mais pobres.
Com efeito, nos Exercícios Espirituais, Inácio propõe ao exercitante a identificação com Cristo pobre, carregado de desprezos, a ponto de ser considerado insensato e louco por Cristo (EE 167). A este respeito poderá ajudar-nos trazer à mente a figura do Messias doloroso patente nos quatro Cânticos do Servo (Is 42; 49; 50; 52). Esta identificação com Cristo doloroso pressupõe o serviço aos mais pobres.
Finalmente um terceiro nível. Os testemunhos de Laínez e de Nadal deixam perceber que esta graça não se destina exclusivamente a Inácio de Loiola, mas que reverte também em benefício de todos os membros da Companhia nascente. De qualquer modo, para Inácio o determinante é ser colocado com o Filho: mediante o Espírito Santo experimentar-se como filho no Filho e em relação com o Pai. As demais graças só se podem seguir desta identificação, nomeadamente o que concerne a uma Companhia de Jesus dinâmica, pois convidada a tomar parte nos trabalhos da paixão.
A visão de La Storta (1537) é bastante posterior à iluminação do Cardoner (1522), no entanto é La Storta que está primeiro, pois é ponto de chegada e confirmação de uma profunda transformação interior que se foi operando desde a conversão ocorrida durante a convalescença do ferimento provocado no cerco de Pamplona.
Em síntese, em Inácio de Loiola, a mundividência pascal é a iluminação ocorrida junto do rio Cardoner, mas o que move o coração de Inácio e a Companhia de Jesus nascente é a visão de La Storta, “o ser posto com o Filho”, a identificação com o Servo de Iahweh!
Para percebermos a sensibilidade à justiça, própria de Inácio de Loiola e da Companhia de Jesus, há que partir quer da mundividência pascal de Inácio, quer do “conhecimento interno (ou íntimo) do Senhor” que move Inácio.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.