O que guardamos para fazer memória? - Ponto SJ

O que guardamos para fazer memória?

Precisamos de cuidar melhor da nossa memória; de a reconhecer como um verdadeiro dom e de aprender a contemplar a nossa vida, sem pressa.

Atualmente, estamos habituados a não ter de nos lembrar de muita coisa. Temos à nossa disposição muitas ferramentas que nos facilitam esse trabalho. Números de telemóvel? Onde é que isso já vai… Datas de aniversário? Temos forma de ter não só o registo como uma notificação no dia a garantir que não nos esquecemos. Perante qualquer acontecimento, o primeiro impulso é, muitas vezes, o de ir ao bolso, tirar o telemóvel e garantir que o registo fica guardado através de uma fotografia.

Já todos ouvimos alguém dizer que “a sua memória já não é o que era”. Costumam dar sinal os que têm mais juventude acumulada. No entanto, mesmo aos 10 e 11 anos – idade dos alunos que acompanho – sou sensível a uma maior resistência à necessidade de memorizar certas coisas. E não me refiro apenas em garantir que sabem a tabuada – que, sim, é para saber de cor. Por isso, tenho-me detido com maior atenção diante da memória e da sua importância. Será que, de forma geral, a nossa memória já não é o que era?

Há quem a estude a fundo e terá, certamente, muito (e bem!) a dizer. Apesar de não ser especialista, acho que, neste processo de tomada de consciência, arrisquei olhar para a memória para além da capacidade mental. Sinto que, mais do que lembrar-me das coisas, na minha vida tem sido essencial aprender a fazer memória.

Lembrar remete-me para a capacidade de recuperar informação sobre uma pessoa, uma data, um tema… E isso é importante, sem dúvida. Na Escola, também, claro. No entanto, fazer memória implica ir mais fundo; implica revisitar a minha vida, isto é, voltar a olhar para aquilo que guardei sobre o que vi e ouvi, sobre o que aprendi, sobre o que vivi.

Acredito que fazer memória ajuda a conhecer e perceber a importância que algo ou alguém teve ou tem na minha vida. E isso não é imediato. Fazer memória pressupõe tempo e parte de um desejo grande de procura de sentido (enraizado na convicção de que este existe). Já todos fizemos a experiência de só perceber o significado ou a importância de alguma coisa tendo deixado passar tempo. Diria, por isso, que fazer memória é o primeiro passo para acolher e integrar algo da minha vida de forma fecunda, de forma que dê fruto – e, lá está, os frutos levam tempo.

Fazer memória pressupõe tempo e parte de um desejo grande de procura de sentido. Já todos fizemos a experiência de só perceber o significado ou a importância de alguma coisa tendo deixado passar tempo.

Atrevendo-me a ir mais longe, tem crescido em mim a forte convicção de que a memória é sagrada. Acredito que Deus nos pode falar muito através da memória.

São Lucas escreveu que Maria guardava tudo no seu coração (Lc 2, 51) e isso toca-me de forma especial. Maria, que desde o início fora consciente de estar diante de algo maior do que ela, ia guardando o que vivia. Guardava-o, certamente, pela necessidade de o revisitar, ainda que tivesse Jesus mesmo diante de si.

Sinto que a convicção cresce depois de cada tempo Pascal. Quando nos pomos à mesa com Jesus no Seu último encontro com os amigos, percebemos que lhes pede que façam algo em Sua memória. Di-lo explicitamente. Os Seus amigos foram repetindo esses Seus gestos, claro. Mas acredito que Jesus lhes tenha pedido isso para que, ao repetirem os gestos concretos, pudessem revisitar o encontro que tiveram e, assim, assimilar com a própria vida aquilo que Jesus lhes quis dizer: que a vida serve para ser dada. Tal como o pão, que se distribui e que, aparentemente, desaparece, também a vida é para ser dada, distribuída.

Quando celebramos Missa todos juntos e fazemos memória destes gestos, também nos alimentamos para este desejo: o de dar a vida.

Depois da Ressurreição, Jesus aparece aos Seus amigos em lugares que lhes são familiares e repete gestos que lhes são conhecidos. Fá-lo quando aparece na margem depois de uma noite sem sucesso na pesca e os desafia, de novo, a lançarem as redes para o outro lado do barco. Ou quando, depois de os acompanhar, parte o pão como tinha feito no último encontro antes da Sua morte. Assim, faz da Sua presença um convite vivo (literalmente!) a que conheçam e revisitem as suas histórias. Se não tivessem guardado no coração esses momentos e esses detalhes, não saberiam que estavam diante de Jesus, que era Ele quem vinha ao seu encontro; não poderiam acolher o que, naquele momento, lhes queria dizer.

Fazer memória é revisitar a minha história na certeza de que Deus habita a minha vida, me tem procurado e me quer dizer alguma coisa; é um passo para me deixar encontrar, para deixar que o Senhor vá mostrando como Se tem feito presente. Quando fazemos memória daqueles que já partiram, também é disto que se trata: tornarmo-nos cada vez mais conscientes e, por isso, agradecidos pelas tantas vezes que permitiram que, através deles, o Senhor nos visitasse; pelo tanto Bem que recebemos através das suas vidas.

No fundo, fazer memória é uma forma de oração, porque me disponho a reconhecer a presença de Deus na minha vida, sem medo de não perceber tudo à primeira (ou mesmo à segunda).

Por tudo isto, acredito que precisamos de cuidar melhor da nossa memória; de a reconhecer como um verdadeiro dom. Para isso, precisamos de aprender a contemplar a nossa vida, sem pressa. Temos à nossa disposição ferramentas úteis para ajudar a registar e ‘armazenar’, quando e se for preciso (até porque as vinte fotografias quase iguais que tiramos com o telemóvel não contribuem para desfrutarmos do momento, pois não?). No entanto, é o nosso olhar que define o que merece ser guardado e com que detalhe – e nada o substitui.

Nesta ‘Escola da Memória’, diria que entramos todos como aprendizes. Temos a oportunidade de dilatar o coração para guardar o que vivemos. Depois, podemos saborear de novo ou procurar uma nova luz, na certeza de que há um tempo para tudo e que os tempos de Deus não são os mesmos que os nossos.

Afinal, o que andamos nós a guardar no coração para, mais tarde, fazer memória?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.