Não sou pessoa de grandes pressas, mas tendo a inventar falsas urgências. Talvez por isso me tenha encontrado a contar quantos dias faltarão, hipoteticamente, para sair de casa. Dou muito valor ao ato de sair de casa, pois todas as grandes aventuras começam com o ato simples em natureza e enorme em repercussão de sair de casa, do bíblico Abraão ao cinematográfico clã Skywalker, do herói clássico Ulisses aos improváveis hobbits (seres ficcionais, centrais no desenrolar da epopeia O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien) . Matutava eu nisto quando, de súbito, como quem é apanhado na cozinha de madrugada com um punhado de Chips Ahoy! lembrei-me: se a viagem é certa, e só tenho de aguardar que me chamem “para fora”, porque não começar já a preparar-me para ela?
Uma dolorosa crise será inevitável. A viagem que me espera será certamente dura, e não poucas vezes sentirei que estou a ser perseguido na noite por espectros que não consigo enxergar. E temo que o Estado, por muito bem-intencionado, por muitos programas e iniciativas que lance, vai acabar por deixar muitos fora da rede de segurança. Ainda que tente resgatar mais uns quantos a quem o sistema lhes falhou, muitos poderão encontrar-se sem ajudas. Neste mar de escolhos invisíveis e consequentes naufrágios em que todos nos lançamos, opto por uma convicção: saber que a aventura que aí vem começa com uma crise dá-me a pequena vantagem de me preparar para a viagem.
Já abandonei casa em busca de aventuras em várias ocasiões: por vezes, de livre iniciativa; outras vezes, em inconsciência; umas quantas vezes porque fui enviado ou convidado; e bastantes vezes porque arrisquei abrir um livro. E o mais surpreendente que me aconteceu nas minhas inumeráveis aventuras foi ter conhecido os hobbits. Não sou epidemiólogo, psicólogo, sociólogo nem economista, pelo que em nenhuma destas áreas me arrisco a comentar o que aí vem. Mas entrei no Shire, a terra dos hobbits, pela primeira vez aos dezasseis anos, e desde então passo longas temporadas por lá. E penso que vale a pena partilhar o que colhi no meu tempo passado entre hobbits.
Assumir a realidade
O que me levou a entrar no Shire não tem nada a ver com o que me leva a regressar. Entrei à procura de feiticeiros, grandes batalhas, monstros… e regresso sempre pela simplicidade disposta a tudo daqueles pequenos, uma heroicidade que faz caminho junto à terra em lugar de procurar uma colina para gritar e desfraldar bandeiras. Foi assim que fui iniciado na lição mais dura de aprender, e que me recordo em qualquer crise que viva, seja ela pessoal – como quando decidi abandonar Direito –, comunitária – as várias cumplicidades no escândalo de abusos na Igreja –, ou social – o início desta pandemia. A lição é simples: nós não escolhemos os tempos que nos são dados a viver, mas sim como viver o tempo que nos é dado.
Temos de assumir a realidade. Uma vez assumida, podemos romper a paralisia do medo e a aventura pode começar. E neste preciso momento apercebo-me: a aventura já começou. Não nos enganemos com o cínico que há em cada um de nós neste momento de confinamento: o que vivemos é uma aventura. Começámos sem rumo fixo, por uma estrada desconhecida, onde surpresas desagradáveis e amizades improváveis poderão surgir, e onde uma só certeza nos acompanha: a de fazer caminho. .
Com quem conto e quem conta comigo
Como em qualquer aventura, temos de descobrir com quem vamos fazer viagem. Uns chegam porque os convidamos, e sempre desejámos fazer viagem com eles. Outros impõem-se ou são-nos impostos. Um dos prazeres simples da vida – e por vezes uma grande maçada – é viver com quem calhou ao nosso lado. Temos de encontrar maneira para que colegas de trabalho, vizinhos e outros com quem nos cruzemos, passem de seres numa toca que não nos diz respeito a irmãos. O caminho só se fará na companhia de irmãos. É provável que a alguns falte comida, que a outros falte ânimo, que àquele falte trabalho e a uns quantos até falte casa. Uns andarão ligeiros pelo caminho, e outros arrastar-se-ão. Mesmo que não possamos aliviar o fardo ou apresentar uma solução, não deixemos ninguém sozinho.
A escassez derrota-se com a imaginação
Todas as razões são boas para festejar. Os hobbits são adultos que não perderam a alegria de criança. São recatados, e geralmente preferem a pacatez do lar à novidade da estrada aberta, mas nada os alegra mais que um fim de dia em que se trocam canções, entre baforadas de cachimbo acompanhadas por uma cerveja. Por quanto tempo ainda só poderemos festejar com quem vivemos ou com quem conseguimos convocar através de um ecrã, não sei; o que sim sei, é que a escassez pode ser derrotada com a força da imaginação.
Esperar algo dos outros
O que leva ao final “feliz” de O Senhor dos Anéis? Podemos falar de irmandade, amizade, fidelidade, esperança, e tudo seria verdade. Mas o momento que se revela decisivo para o desenlace final encontramo-lo na prequela, em O Hobbit, no instante em que Bilbo Baggins se sente compelido a matar Gollum e acaba por não o fazer, por força de uma empatia tão injustificada quanto misteriosa: a misericórdia.
Misericórdia: um coração que desce ao encontro de outro. Este gesto de Bilbo na prequela é a chave para o desfecho da trilogia: sem ele, o anel não seria destruído. Todos temos feridas, todos temos razões para não confiar, mas não deixemos de esperar coisas dos outros. O futuro está-nos vedado e desconhecemos o peso que um simples gesto de bondade terá no desenrolar dos eventos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.