O poliedro de Francisco

O poliedro é também o trabalho em equipa/rede, colaborando com outros. É uma nova forma de ver a realidade e de trabalhar, e, sobretudo, de se relacionar e estar com os outros.

Dentro de dias, a 13 de março, celebramos o 9º aniversário da eleição do Papa Francisco. Um pontificado marcado por graves crises: o drama dos refugiados/migrantes, a questão dos abusos (sexuais, psicológicos, de autoridade), as mudanças climáticas, a pandemia, a invasão da Ucrânia. Um tempo em que a Igreja procura encontrar um estilo que lhe permita ser uma voz profética no meio do mundo. Um tempo em que, conjugando cristologia e pneumatologia, o Espírito Santo se faz particularmente presente e dinâmico, habitando e trabalhando não só na Igreja, mas também conduzindo a História da Humanidade rumo à consumação em Cristo.

Oito meses depois de ter sido eleito, a 14 de novembro de 2013, com a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG – A Alegria do Evangelho), o Papa traçava as linhas de fundo do que viria a ser o seu programa. O contacto com este texto impressionou-me particularmente no que respeita aos quatro “princípios/tensões bipolares”. Com frequência o Papa tem retomado estes princípios: “o tempo é superior ao espaço”; “a unidade prevalece sobre o conflito”; “a realidade é mais importante que a ideia”; “o todo é superior à parte”.

Será que se trata de axiomas/aforismas/verdades apodíticas, que lhe surgiram na mente inesperadamente e que se lhe impuseram como inquestionáveis? Será que se trata de esculturas gregas, anatomicamente perfeitas, que os arqueólogos puseram a nu? Na Exortação EG, estes quatro princípios integram uma secção intitulada “O bem comum e a paz social” (EG 217-221). O próprio Papa diz que “derivam dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja” (EG 221). Em cada um destes princípios temos dois polos em tensão, mas não de uma forma totalmente simétrica, porque há um que prevalece sobre o outro.

Jorge Mário Bergoglio chegou a iniciar um doutoramento com a tese “Oposição polar como estrutura de pensamento quotidiano e de proclamação cristã”. Propunha-se explorar um filão que Romano Guardini aborda na sua obra L’opposizione polare. Saggio per una filosofia del concreto vivente. Este filão permite desbloquear conflitos e iniciar processos sinodais (do grego syn-odos, que significa caminhar juntos). O Papa distingue “contradições” e “contraposições”. “As contraposições são contradições aparentes”. As contraposições são “polaridades vivas”. “As contraposições interagem numa tensão frutuosa e criativa”, permitindo-nos caminhar/sonhar juntos. As contraposições permitem ultrapassar quer o fundamentalismo quer o relativismo (Papa Francisco, Sonhemos juntos).

As contraposições permitem ultrapassar quer o fundamentalismo quer o relativismo (Papa Francisco, Sonhemos juntos).

O Papa Francisco cresceu na tradição dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loiola (1491-1556). Com a idade de 30 anos, Inácio experimentou o apelo a acompanhar este Jesus desconcertante, que não se deixa agarrar por esquemas e preconceitos. Jesus é de uma liberdade radical e total, nos antípodas do mundo. Os adversários de Jesus fazem tudo para O apanhar em contradição, mas Jesus é de uma integridade a toda a prova. Jesus é eternamente gerado pelo Pai e habitado pelo Espírito Santo, que não se sabe de onde vem e para onde vai (Jo 3)! Seria interessante elencar as aparentes contradições de um Jesus surpreendente. No essencial, esse trabalho já foi feito pelos grandes Concílios Ecuménicos do primeiro milénio da História da Igreja.

Pedro Arrupe (1907-1991) é o jesuíta que mais marca a Companhia de Jesus no pós Concílio Vaticano II (1963-1965). Foi missionário no Japão. No final do Vaticano II foi nomeado Padre Geral da Companhia de Jesus, da qual esteve à frente de 1965 a 1981. O teólogo Karl Rahner considera que o testamento de P. Arrupe se encontra no texto “O Coração de Jesus, resumo e símbolo do amor”. Nesse texto, P. Arrupe enumera vários binómios em tensão, característicos dos Exercícios Espirituais e da Companhia de Jesus.

Debrucemo-nos sobre as “tensões” referidas no dito testamento do P. Arrupe: 1. “a tensão entre fé e justiça”, geralmente traduzido por “o serviço da fé e a promoção da justiça”. O reino de Deus pressupõe o teu empenho em favor dum mundo mais justo; 2. “a tensão entre perfeição própria e alheia”: salvas a tua pessoa empenhando-te na salvação do outro; 3. “a tensão entre oração e apostolado ativo”, geralmente traduzido por “contemplação na ação” (J. Nadal) ou por “ver a Deus em todas as coisas” (Inácio de Loiola); 4. “a tensão entre discernimento e obediência”: discernir o que o Espírito Santo te diz, dispondo-te também a obedecer a um outro, por meio do qual o Espírito te interpela. Para P. Arrupe, essas tensões só são resolúveis se vividas à luz do Espírito de Amor que jorra do Coração do Crucificado-Ressuscitado.

Para Arrupe, essas tensões só são resolúveis se vividas à luz do Espírito de Amor que jorra do Coração do Crucificado-Ressuscitado.

Mas retomemos sucessivamente os quatro princípios da exortação EG. Associado a cada um deles há uma “tensão bipolar” (EG 222. 231. 234). Tal como em Inácio de Loiola a relação entre os dois polos não é rigorosamente simétrica, também na exortação EG, em cada binómio, um dos polos tem a primazia sobre o outro:

1. “O tempo é superior ao espaço”. Que tempo é este? Antes de mais, certamente, o tempo dos processos, que leva à maturidade. Um tempo que não é puro cronos, o tempo dos relógios. Pelo contrário, este tempo já traz em si a marca do kairos, o tempo plenitude. Assim concebido, este tempo está associado à história da salvação, contrapondo-se ao espaço que se situa mais na lógica dos impérios

2. “A unidade prevalece sobre o conflito”. De acordo com a profecia, os impérios e as guerras darão lugar à justiça e à paz em prol de todas as nações.

3. “A realidade é mais importante que a ideia”. Não confundas o mapa com a realidade ou a figuração com a realidade. A ideia é sempre uma redução, a realidade é sempre mais rica. A ideia como propedêutica à plenitude, da qual a realidade está cheia. A ideia tem de ser validada pela realidade. A ideia da lei (Antigo Testamento) dá lugar à realidade do amor (Novo Testamento).

4. “O todo é superior à parte”. O jardim do Éden, com a Árvore da Vida ao centro, supera toda a criação que o povoa. Tendo ao centro a cidade santa de Jerusalém, com o templo, Israel supera as doze tribos que o constituem. Também para Inácio se abriu, pelos olhos do entendimento, um novo horizonte e uma perspectiva integrada da realidade. A graça que lhe foi concedida, junto às margens do rio Cardoner, fez nascer assim um homem novo, com um olhar renovado sobre o mundo.

A realidade do mundo é complexa: em vez de simples binómios, há que considerar as mais variadas perspetivas, daí surge o poliedro. O poliedro é também o trabalho em equipa/rede, colaborando com outros. É uma nova forma de ver a realidade e de trabalhar, e, sobretudo, de se relacionar e estar com os outros. Exemplificando com a encíclica Laudato Si’, o poliedro integra “o diálogo e a transparência nos processos decisórios”, por um lado, nos diferentes níveis da política internacional, nacional e local, e por outro, nas diferentes áreas da política e da economia, das religiões e da ciência. Pretende-se criar sinergias, de maneira a que as diferentes partes se fortaleçam conjuntamente.

Neste mundo plural, urge implementar uma cultura do diálogo e da reconciliação, onde cada parte “deve estar mais pronta para salvar a proposição do outro, que para condená-la” (Ex. Espirituais 21).

O Papa Francisco recorre à imagem do poliedro no contexto do binómio “O todo é superior à parte” (EG 236). É uma imagem recorrente para ilustrar a estratégia que permite superar as graves crises do nosso tempo. Neste mundo plural, urge implementar uma cultura do diálogo e da reconciliação, onde cada parte “deve estar mais pronta para salvar a proposição do outro, que para condená-la” (Exercícios Espirituais 21). Só na medida em que pusermos em diálogo os mais variados interlocutores é que poderemos encontrar soluções. Claramente este diálogo passa pela abertura ao Espírito Santo, que apenas pressupõe que pessoas de boa vontade colaborem juntas.

Tendo na origem o diálogo com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, Fratelli Tutti, Carta encíclica sobre a fraternidade e amizade social, constitui um programa para lançar os fundamentos/bases de uma nova humanidade, onde o respeito pelas diferentes culturas e religiões, pelos valores da justiça/paz e pela integridade da natureza se impõem. Para além do critério económico, há que ter também em conta o critério social e o critério ambiental: as duas encíclicas deste pontificado, Fratelli Tutti e Laudato Si’, constituem este abraço e coração universal que, no Espírito Santo, configuram todas as nações em Cristo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.