Estreou há poucas semanas a quarta temporada da série The Crown, na plataforma Netflix, que acompanha o reinado da rainha Isabel II de Inglaterra. Nos 10 episódios desta mais recente entrega destacam-se duas figuras que – sem nunca se cruzarem – formam o fio condutor que dá corpo à narrativa: de um lado, Margaret Thatcher, Prime Minister de Sua Majestade entre 1979 e 1990; do outro, a princesa Diana e o seu desastroso casamento com o príncipe Carlos, herdeiro do trono. Para lá da curiosidade histórica que possam suscitar uma e outra personagem, o retrato que a série apresenta (não esquecendo que se trata de ficção) parece-me apresentar pistas para olhar e refletir sobre a nossa realidade presente.
O poder de não fazer nada
Constitui um tema recorrente da série, desde a sua estreia em 2016, a relação da rainha com os diversos primeiros-ministros, os quais se vão sucedendo enquanto Isabel II permanece. The Crown apresenta de modo muito cuidado o lugar e o papel do monarca no sistema politico-constitucional britânico, na sua relação com o poder democraticamente eleito, mas não é minha intenção entrar aqui na discussão “monarquia vs. república” (debate no qual a série, evitando reduções simplistas, não toma posição).
Marcou-me especialmente, num dos últimos encontros entre Thatcher e Isabel II, diante do desespero da “Dama de Ferro” que se sente obrigada a “fazer algo” para resistir à onda de contestação interna no seu partido, o conselho da rainha: “sometimes, the best thing to do is doing nothing”. Às vezes, o verdadeiro poder não está em “fazer”, mas num “não fazer” que não é fuga nem resignação. É recorrente, ao longo da série, o retrato deste “não poder” da rainha, impossibilitada de entrar no jogo político, mas não por isso destituída de uma profunda influência, que é garantia de estabilidade, manifestada no seu modo de estar, de interessar-se, de conhecer, de criar relações e, nos momentos-chave, de fazer as perguntas difíceis.
Também nós podemos experimentar a tentação de exercê-lo apenas com o “fazer” e esquecer essas outras formas escondidas de construir, de fazer crescer.
Também nós que não somos monarcas nem governantes somos detentores de “poder”: na gestão da nossa vida, nas relações que tecemos e nos tecem, na sociedade que habitamos. Também nós podemos experimentar a tentação de exercê-lo apenas com o “fazer” e esquecer essas outras formas escondidas de construir, de fazer crescer.
Cegados pelas próprias necessidades
O tema-estrela da quarta temporada de The Crown – pelo menos a nível mediático – será certamente o retrato de Lady Di, a “princesa do povo”, que a série situa bem longe das idealizações dos contos de fadas. Não é aqui o lugar – se é que existe – para uma apreciação moral das personagens envolvidas, protagonistas de um casamento desastroso, não só para o casal, como para todos os envolvidos.
O interesse da série parece-me estar antes na representação das dinâmicas autodestrutivas que levam Carlos e Diana, que se pode supor inicialmente bem-intencionados, a erguer entre si um muro de não-comunicação que corroeu qualquer possibilidade de sucesso da sua relação. A radical ausência de diálogo no casal parece-me representada na série como consequência da concentração, ou mesmo encerramento, de Carlos e Diana nas próprias necessidades, tornando-os incapazes de escuta e de empatia. O outro passa a ser apenas aquele que “não me compreende”, “não me conhece”, “não sabe aquilo de que necessito”…
Num mundo “dinamizado” pelo consumismo, numa sociedade que convida ao conforto, à realização pessoal e à auto-celebração, torna-se difícil fazer espaço para o outro, perguntar-nos “como posso contribuir para a sua felicidade?” e assim tornar-nos edificadores de pontes e não levantadores de muros.
Num mundo “dinamizado” pelo consumismo, numa sociedade que convida ao conforto, à realização pessoal e à auto-celebração, torna-se difícil fazer espaço para o outro, perguntar-nos “como posso contribuir para a sua felicidade?” e assim tornar-nos edificadores de pontes e não levantadores de muros.
A quarta temporada de The Crown termina na noite de Natal, com uma família real (des)unida pela força da responsabilidade do papel que a cada um compete e pelo desejo de encontrar o próprio lugar num mundo complexo, também para quem aparenta encarnar o privilégio. Nestas semanas de preparação que agora se abrem, possamos nós tornar-nos cada vez mais conscientes da complexidade que nos envolve (desde o nível micro das relações pessoais às macro dinâmicas da sociedade) para encontrar e abraçar o nosso papel como construtores de relações justas.
Bom advento!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.