O pedagogo Francisco

Como pedagogo, o Papa Francisco, mais do que textos inspiradores sobre a educação, deixa-nos gestos proféticos sobre o estilo de educar de Jesus.

Há uma semana fomos surpreendidos por um apagão que nos deixou sem luz, internet, comunicações. As reações foram diversas, como o são as pessoas e as suas paisagens interiores. Mas, ao final do dia, enquanto passeava, trazendo à memória o reboliço da ansiedade e a calma dos educadores que reagiram pondo a pessoa no centro, fui surpreendido por ruas de pessoas a caminhar, bancos de jardim de leituras pausadas e inúmeros picnics familiares à sombra das árvores. Parecia outro mundo. Não havia telemóveis, mensagens, informação, mas havia tempo, respiro e silêncio. Diante deste cenário genesíaco, quando entrei no parque, para o meu habitual passeio, senti que regressava a um mundo que julgara perdido. Depois de tantas teorias precipitadas, de perceções disparatadas e da ansiedade das prateleiras vazias, que anunciavam o inevitável fim do mundo, as pessoas, como o silêncio das raízes das árvores, testemunhavam paz. No entanto, depois dos rádios a pilhas e da água engarrafada, vieram os aplausos do regresso da energia, foi a noite, a seguir a manhã, e tudo voltou à habitual fantasia.

Já quinze dias antes, ainda que por motivos diversos, havíamos vivido um outro apagão: a morte do nosso querido irmão Papa Francisco, em plena oitava da Páscoa. Depois de alguns meses de debilidade, internamentos e doença, faleceu um pedagogo. Nestas últimas duas semanas, talvez nos tenha acontecido o mesmo que aos discípulos na Páscoa da Ressurreição: na confusão de sentimentos de tristeza e de gratidão, fomos recordando as palavras e gestos do Papa Francisco, não como se ele fosse um herói ou um santo, mas procurando reconhecer a presença do Senhor Ressuscitado. Mais do que a morte de um Papa que procurou servir a Igreja e o Mundo, estamos a viver a morte de um irmão que, associando de forma eficaz gestos e palavras, nos desinstalou do comodismo do túmulo que está vazio e nos abriu os olhos para reconhecer a presença de Deus vivo e ressuscitado no meio de nós.

Mais do que a morte de um Papa que procurou servir a Igreja e o Mundo, estamos a viver a morte de um irmão que, associando de forma eficaz gestos e palavras, nos desinstalou do comodismo do túmulo que está vazio e nos abriu os olhos para reconhecer a presença de Deus vivo e ressuscitado no meio de nós.

Cura personalis. O cuidado pelo outro, por acompanhar os seus processos e ajudá-lo a tomar consciência de si e do mundo, não era para o pedagogo Francisco um jargão ou uma obrigação moral. Era a sua forma de ser. A atenção que dedicava a cada um, a forma simples como comunicava, a sua escuta atenta e discernida, não tinham como objetivo convencer o outro das suas ideias, impondo uma ideologia ou moralidade, mas ajudar cada um a comunicar internamente com o Senhor Ressuscitado que fala ao coração e transforma a nossa vida. Era um pedagogo dos processos, livre para ajudar cada um a fazer o seu caminho, sem se impor ou manipular. Não olhava o mundo a partir da sua cátedra de sabedoria, mas como Jesus que se ajoelha para lavar os pés aos discípulos. Na pedagogia inaciana, a cura personalis – a atenção e cuidado ao processo individual de cada aluno – nasce da relação humana e livre entre educador e aluno, que se inspira na relação entre aquele que orienta os Exercícios Espirituais e aquele que os faz – o que orienta não deve interferir na experiência, mas ajudar o exercitante a encontrar a vontade de Deus. Através do seu exemplo, o educador é chamado a ajudar cada aluno a refletir sobre a sua experiência, de modo a que possa modificar os seus atos.

Magis. Para o pedagogo Francisco, o evangelho não era uma ideologia mas uma semente que lançada em todo o tipo de terrenos pode dar fruto virtuoso. Era um pedagogo escatológico e um teimoso da esperança. Pôr os pobres no centro das nossas atenções, abrir as portas e renovar o ar bafiento das nossas expectativas, desmoralizar o discurso, propor novas formas de organizar a economia, denunciar injustiças, lutar contra a guerra, defender os descartados são formas ativas de promover um pacto educativo global. O magis inaciano carateriza-se pela busca da Maior Glória de Deus, isto é, procurar atender ao mais urgente, mais necessário e mais universal, sem excluir ninguém. Tal como não existe verdadeiro magis sem diversidade nem inclusão, também não existe Maior Glória de Deus sem a construção do bem universal e o cuidado da casa comum. A justiça e a fraternidade são um grito de Deus que deseja profundamente a salvação da humanidade, não se cansando de morrer com todas as vítimas e derramar a sua misericórdia. Para Francisco o magis não era uma utopia irrealizável, mas o compromisso repetido e fiel de unir todas as boas vontades na transformação do mundo. Mais do que procurar ser a melhor versão de si próprio, inspirado pelo Senhor Ressuscitado que não esconde as suas feridas, Francisco foi testemunho de fragilidade e de como a frustração pode ser caminho de humildade e de gratidão. Era um pedagogo da pequenez, que semeava incansavelmente e com humildade através do seu exemplo, sem se cansar de aprender.

Liberdade interior. Num contexto condicionado por lobbies, influências, algoritmos, poder e complôs, o pedagogo Francisco, não vivia condicionado pelo medo, limitado pelos seus interesses, fechado na sua visão ou subjugado ao sempre foi assim. Propondo a sinodalidade como caminho de discernimento, a sua pedagogia, tão antiga quanto a Igreja, não olhava a diferença como ameaça, mas procurava ler nos sinais dos tempos a verdade do Espírito. Inspirado pelos Exercício Espirituais e pela indiferença inaciana, procurava a liberdade interior de não se deixar condicionar por si e pelos outros, fazendo da avaliação um exercício de releitura e interpretação da realidade centrado na consolação e na alegria. Conhecedor dos processos humanos, sem ignorar tudo quanto ainda está por fazer, tinha a coragem de não se deixar enganar pelos dinamismos destrutivos do pessimismo, propondo processos de discernimento inovadores e de mudança. A pedagogia de Francisco não era feita de modas ou de influencers, mas da solidez da escuta, da abertura do diálogo, da liberdade de quem vive para servir.

Há coisas piores que um apagão elétrico de 10 a 12 horas: um apagão de sentido. De que nos serve ter luz, se não nos deixarmos iluminar pelo evangelho. De que nos serve ter rádio a pilhas, se não comunicarmos através do exemplo. De que nos serve ter água engarrafada, se não soubermos ajudar cada aluno a encontrar a fonte. De que nos serve viver a pedagogia da quaresma, se não nos deixarmos ressuscitar pela alegria pascal. De que nos serve ter tido um pedagogo como Francisco, se voltarmos à rotina voraz dos dias e, após a sua morte, fizermos o que sempre fizemos. Que o Papa Francisco não seja apenas o 266º sucessor de Pedro, mas possa ser o nosso pedagogo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.