Fogem da pobreza, mas também da violência e perseguição, nos seus países de origem, Honduras, Guatemala, El Salvador e Nicarágua. Sentem que não têm alternativas e arriscam tudo, mesmo sabendo que não são bem-vindos. Homens, mulheres e crianças percorreram durante dias, semanas e meses, milhares de quilómetros a pé, decididamente (teimosamente) em direção ao “sonho americano”. No imaginário de muitos, a América continua a ser esse grande país construído por imigrantes de várias origens, onde qualquer pessoa pode vencer pelo seu mérito, realizar os seus sonhos e prosperar. Mas essa, é uma América mitológica. E os muros que se erguem, não são apenas muros físicos.
Em Tijuana, cidade situada no noroeste do México, que faz fronteira com os Estados Unidos e onde chegaram, desde 19 de outubro, mais de 6.000 migrantes, a tensão é grande. O Presidente da Câmara e parte da população protestam contra a “avalanche” de migrantes. Nos EUA, o Presidente Trump avisa no twitter: “Vão para casa!” Mas estas pessoas já chegaram longe, vencendo a fome, a doença e a dureza do caminho. Não querem desistir agora de atravessar a fronteira para os Estados Unidos.
A porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) para as Américas, Francesca Fontanini, alerta para esta crise humanitária e para a mudança do tipo de mobilidade humana. Com as caravanas, as pessoas mostram que querem viajar juntas, para ter uma viagem mais segura. O fenómeno tende a repetir-se e é previsível que a crise assuma maiores e ainda desconhecidas proporções. Caminham em conjunto diferentes gerações, famílias inteiras e diversos perfis: mulheres e homens sozinhos, mulheres com crianças, menores não acompanhados, idosos, comunidade LGBT. Juntos, atravessam países em busca de um refúgio, porque para muitos o retorno pode ser uma verdadeira sentença de morte. Por esta razão, organizações que promovem os direitos humanos, como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch, alertam para a situação dos países de origem destes migrantes, nomeadamente das Honduras. Neste país, os delitos violentos são um problema generalizado e a taxa de homicídios é uma das mais altas do mundo, com 43,6 mortos por cada 100.000 habitantes.
Juntos, atravessam países em busca de um refúgio, porque para muitos
o retorno pode ser uma verdadeira sentença de morte.
É sabido que os Estados têm o direito de autorizar ou recusar a entrada de pessoas no seu território. No entanto, existe também a obrigação no direito internacional de proteger os refugiados e os requerentes de asilo. Para isso, é necessário analisar individualmente os pedidos de proteção de cada pessoa. Muitos pretendem pedir asilo nos Estados Unidos. Mas os prazos de resposta são bastante longos e dissuasores. Independentemente do estatuto migratório e legal, a dignidade e os direitos fundamentais de todas as pessoas, devem ser defendidos.
A verdade é que muitos países e populações, perante a pressão migratória de um grande número de pessoas, sentem a sua segurança e comodidade ameaçadas, e erguem um muro de medo. Esta barreira é feita de mitos, preconceitos e estereótipos em relação aos estrangeiros. Mas também tem algo de territorial e instintivo. As fronteiras delimitam um determinado território e os seus recursos. Custa muito partilhar, vencer este egoísmo, ver os migrantes como pessoas de valor e talento, que podem contribuir e muito para a prosperidade e o bem comum. Por outro lado, os governos, em maior ou menor grau, receiam o “efeito chamada” (de mais migrantes) que algumas políticas humanistas possam ter, assim como a sua repercussão no eleitorado. Vimos o que sucedeu recentemente na Europa, com a tomada de posição inicial da Alemanha relativamente à crise dos refugiados sírios e a fatura política que a mesma implicou. As ondas de choque ainda se fazem sentir. Com a presente crise de migrantes da América Central, Trump tem outra boa oportunidade de marcar uma posição forte, junto do seu eleitorado, num dos temas mais controversos da sua política.
Entretanto, em Tijuana, a situação é de impasse. Algumas poucas pessoas desistiram e optaram por regressar, outras foram deportadas pelas autoridades mexicanas, um grupo de mulheres iniciou uma greve de fome na esperança de uma resposta, outro grupo (incluindo crianças) tentou atravessar a fronteira para os EUA e foi forçado a dispersar após o uso de gás lacrimogénio pelas autoridades norte-americanas. Grande parte permanece, com as suas bandeiras brancas, e não abandona a esperança. As condições são difíceis no complexo que abriga a caravana. A Amnistia Internacional visitou o local e considerou que o abrigo não tinha comida suficiente, nem serviços de saúde adequados para a quantidade de pessoas.
Estamos dispostos a justificar o uso da força e repressão severas sobre pessoas cujo único crime é atravessar uma fronteira em busca de paz e segurança ou em busca de uma vida melhor para si e os seus filhos?
A forma como somos capazes de “acolher, proteger, promover e integrar” (como pede o Papa Francisco) migrantes e refugiados e a capacidade para estender pontes de entendimento e construir a paz, têm um enorme impacto no mundo que desejamos deixar às gerações futuras. Assim, por muito complexo que pareça o problema, acredito que está nas nossas mãos sermos parte da solução. Seguros dos nossos valores, com espírito de solidariedade e colaboração, é possível atuar a diferentes níveis, local, regional e global.
Mas, o muro do medo é difícil de vencer e, particularmente neste tempo em que nos preparamos para celebrar o Natal, é caso para nos questionarmos:
- Será que, por medo, não estamos de alguma forma a fechar os olhos a estratégias e políticas de contenção da migração, que têm custado tantas vidas humanas e violações grosseiras de direitos humanos, de que é exemplo a detenção administrativa de crianças e separação dos seus pais?
- Estamos dispostos a justificar o uso da força e repressão severas sobre pessoas cujo único crime é atravessar uma fronteira em busca de paz e segurança ou em busca de uma vida melhor para si e os seus filhos? Poderemos porventura aceitar o discurso xenófobo e a desumanização, o paralelismo entre migrante e criminoso?
- Até onde estaremos dispostos a ir, na defesa de valores humanistas tão difíceis de conquistar no passado, justamente neste ano em que se comemora, dia 10 de dezembro, o 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como no dia 18 de dezembro, o Dia Internacional do Migrante?
Crises humanitárias como estas, de migrantes e refugiados que tentam chegar à Europa ou aos Estados Unidos da América, põem verdadeiramente à prova a concretização dos valores humanistas apregoados pelo Ocidente. Os Direitos Humanos de nada servem no papel. É preciso coerência e coragem para defender os valores em que acreditamos, fazer o que sabemos estar certo.
As barreiras de betão ou outras que nos separam dos migrantes são menos difíceis de derrubar do que o medo, o maior de todos os muros.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.