“Quando as escolas reforçam a tendência da sociedade de premiar e valorizar a competição meritocrática e de criar uma divisão entre vencedores e perdedores, promovem um dano na educação cidadã dessas crianças. As escolas precisam de ser espaços de resistência a essa tendência.” Michael Sandel, 2020.[1]
O “sistema educativo mundial”, protótipo dos “sistemas educativos nacionais”, ainda que apresentado de modo apelativo e mobilizador, dissimula contradições várias. Uma delas, objecto deste texto, é o elogio da colaboração, ao mesmo tempo que estimula à competição de tipo empresarial. O que devem os educadores fazer? Resistir, diz o filósofo Michael Sandel porque o conhecimento, tal como outros bens, que concorrem para o “bem comum”, não tem preço nem pode ser posto ao serviço da meritocracia; tem um valor que deve ser partilhado
1. A emulação
A partir do século XV e, sobretudo, do XVI, o desenvolvimento de um certo modelo pedagógico permitiu que, no Ocidente, se escolarizasse um número crescente de crianças. Entre as suas marcas distintivas contam-se a organização dos alunos em classes homogéneas, papéis diferenciados pautados pela transmissão e pela disciplina, programas com conteúdos sequenciais, lições conjuntas complementadas com o estudo autónomo, e avaliação, com os seus ritos orais e escritos, recompensas e punições. Queria-se a emulação omnipresente por lhe conferir o seu sentido último: aperfeiçoamento do ser humano. Toda a acção educativa, devidamente didactizada, teria de convergir para que, a cada momento, os alunos se superassem a si mesmos e aos outros, quer em conhecimento quer em comportamento. O sentimento de brio deveria ser-lhes incutido desde cedo, por via do estímulo ou do incitamento. Sem subterfúgios, trata-se de disputa, de competição, ainda que submetidas aos princípios da honestidade e justiça.
Classificado, desde finais do século XIX, como “tradicional”, tal modelo tem sido depreciado nos seus princípios e manifestações. Insiste-se em chegar ao seu contrário, sendo o resultado o aparecimento de um número assinalável de outros modelos, desde os libertários aos activos, com as suas múltiplas combinações.
Eis que, em tempos recentes, entidades globais de matriz financeira e política, que se têm infiltrado na educação, anunciaram o refinamento de um revolucionário modelo que criaram, capaz de conduzir ao bem-estar individual e colectivo, no quadro de urgência que é a “sustentabilidade”, tal como foi definida na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas. Poder-se-á, finalmente, alcançar a velha utopia da “educação do futuro”.
2. O mérito
Para cumprir a “educação do futuro”, há que potenciar o “desenvolvimento de competências para a acção”, com destaque para as de ordem “emocional e social”. Das muitas inscritas nesta designação, foco-me na colaboração.
Noto o dissenso entre o significado que tendemos a atribuir-lhe – cooperar com outrem para benefício comum – e o que ganha nessa “educação” – competir com outrem para benefício próprio. É este último que se vê compatível com o novo propósito e funcionamento da escola: subordinados aos da empresa, deverão dar resposta cabal a necessidades do mercado uniformizado e mundializado, regulado pelas normas da economia neoliberal.
Ora, tais normas exaltam a cultura do mérito: os verdadeiros empreendedores, aqueles que, face a um desafio, se empenham, esforçam, criam e arriscam, conquistarão, indubitavelmente, o sucesso. Como vencedores, têm de ser recompensados de forma palpável e bem visível, até para que continuem a progredir e para que outros lhes sigam os passos. O prémio – preferencialmente em dinheiro e com ampla divulgação – constitui a forma mais apurada de se atingir esse duplo objectivo, passando, por isso, de figura excepcional a banal. Empresas, tanto privadas como públicas, integraram-na nas suas rotinas e contas. A sociedade “normalizou-a”.
Para talhar o “espírito empreendedor” – o “modo de ser” requerido no auspicioso futuro, dinamizado pelo interminável ciclo de produção-consumo – há que colocá-lo no centro dos sistemas educativos, em todos os seus níveis e áreas, projectos e iniciativas, prestações e desempenhos. E não pensar apenas nos alunos, mas também nos professores e nas próprias escolas, que, assim, mais razões terão para os entusiasmarem e se entusiasmarem a participar em concursos vários, associando-se, de preferência, a agentes sociais ou stakeholders.
Em Portugal, como noutros países, se consultarmos as páginas online de escolas, mas também de empresas e suas fundações, perceberemos bem a amplitude e sofisticação desta “dinâmica”, deduzindo-se pelas palavras, fotografias e vídeos disponíveis uma inspiração generalizada que tende a anular dúvidas. Precisamos de superar o deslumbramento para conseguir pensar…
3. A resistência
O recorrente elogio do triunfo – lucrativo sobretudo para quem o promove –, tornado parte do modelo pedagógico que se consolida, tem sido pouco analisado. Mas deve sê-lo, pois vai além da velha e ostracizada emulação na promoção da competição. O recente livro A tirania do mérito[1] é uma boa ajuda. O seu autor, Michael Sandel, professor de filosofia política na Universidade de Harvard, que se dedica a investigar a justiça, discute a “crença de que as pessoas com talento e boas credenciais merecem estar num plano social superior” (p. 115), o que levará cada um a “preparar-se para competir de modo eficaz numa economia globalizada” (p. 113). Os meritocratas, que a criaram, com a sua “retórica da ascensão”, “moralizam o êxito e o fracasso” (p. 117), o que, além de reduzir a pessoa à condição de trabalhador, afasta a democracia do seu horizonte.
Sandel diz que a escola, em vez de replicar a crença, deve rejeitá-la com firmeza, pois tem a responsabilidade de preparar os mais jovens para serem pessoas reflexivas e capazes de deliberar sobre o bem comum. O trabalho que um dia realizarão, e a dignidade que o deve conduzir, enquadra-se nesse registo e não na meritocracia, a qual, sublinha, não pode ser nunca considerada uma “virtude”, como se dá a entender. Em entrevista complementou o seu raciocínio: a escola é “o lugar ideal de resistência à tentadora, porém falsa, ideia de que a sociedade é dividida entre vencedores e perdedores”[2]. Estando ela enraizada no colectivo, os alunos absorvem-na, daí a dificuldade acrescida, mas não declinável, dos educadores: há que mostrar-lhes que nem tudo tem um preço e uma auto-gratificação, exactamente porque muitas coisas têm valor e que esse valor a todos beneficia. É o caso do conhecimento que está confiado à escola.
Em suma
À emulação, como característica da educação tradicional, têm sido atribuídos males maiores, nomeadamente o facto de promover a competição e, assim, impedir a colaboração. A inovadora “cultura do mérito”, no seu molde empresarial, advoga este valor estimável, ainda que promova a competição. Chegámos a uma contradição óbvia que, além disso, leva a negar a função da escola. É que os seus fins, centrados no aperfeiçoamento ontológico, com base em conhecimento, não cabem nesse molde. Tendo-nos desviado deles sem grande consciência nem resistência, precisamos de os retomar sob pena de pactuarmos com uma aprimorada tirania.
Fotografia: João Ferrand
[1] Em entrevista a Pablo Guimón: “Michael J. Sandel: ‘Quem faz sucesso tende a achar que é graças a si mesmo’”. El País, 12 de Setembro de 2020
[2] Sandel, M. J. (2020). A tirania do mérito: O que aconteceu com o bem comum? Editora Civilização Brasileira.
[3] Alfano, B. (2021). ‘A escola não pode reforçar a lógica da competição’, diz filósofo Michael Sandel. O Globo, 10 de Janeiro.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.