O lítio lá de longe

Anima-os sobretudo o direito a serem tratados com hombridade – não serem ignorados, participarem das decisões relevantes que implicam com as suas terras, as suas gentes e as suas vidas. No fundo, serem respeitados.

Imagino-me natural de Boticas, da freguesia de Covas do Barroso. Ou de Montalegre, de qualquer uma das aldeias de Morgade, Carvalhais ou Rebordelo. E imagino-me a fazer a vida por lá, refém (ou fiel?) da minha terra. Imagino-me a viver do que ainda houvesse. Um pequeno negócio comercial (a drogaria, a farmácia, a bomba de gasolina). Como docente ou auxiliar da única escola a funcionar. A entregar-me ao que a natureza permite (a produção de mel, de azeite, de castanhas). Ou com poucas dezenas de animais que garantem a limpeza dos vales e das montanhas e que dão «a melhor carne do mundo» (ainda que não conheça outra). Imagino até que o meu companheiro de escola (que já não via há 30 anos) tinha regressado da Suíça e restaurado a antiga Casa do Povo, onde acabara de abrir um alojamento turístico.

Imagino-me também na minha vida. Alheado e desesperançado de tudo o que tivesse a ver com o governo, com Lisboa (onde tinha ido uma vez por causa de uns papéis) ou até com o Porto (onde em tempos chegou a ser possível tratar dos papéis «mas agora já só em Lisboa»).

Apesar dos telemóveis (que dão muito jeito). Apesar da internet (que, dizem, dá muito jeito). Apesar das redes sociais (um tal de Facebook). Apesar de tudo isso (que «encurta distâncias») eu estaria em Boticas ou em Montalegre à distância de sempre. Até poderia estar perto, não fora verem-nos longe, não nos conhecerem, não nos ouvirem. De lá – de Lisboa ou do Porto – estou longe, mesmo longe. Mais longe do que antes da A7 ou da A24.

De repente, no entanto, ouve-se falar de nós. Das nossas terras. Dos lugares por onde andam os nossos animais. Dos cursos onde corre a água mais limpa que o mundo conhece. E ouvimos tudo com números impressionantes. Montanhas inteiras. Milhões de Euros (que nem sabemos medir). Empresas (ditas multinacionais) com nomes sugestivos e sofisticados. Tudo por causa de um tal de lítio que estará incrustado nos nossos solos.

A nós, que lá estamos (muito longe…), que por lá vivemos, e que conhecemos como ninguém cada palmo daquelas terras, a nós, dizia, ninguém diz nada. Ninguém nos pergunta. Ninguém nos explica. Ninguém cuida do nosso sobressalto (nem sabem dele ou nem querem saber), deixando-nos entregues aos piores rumores.

De lá – de Lisboa ou do Porto – estou longe, mesmo longe. Mais longe do que antes da A7 ou da A24.

E agora paremos de imaginar.

Este «eu» e este «nós» existem mesmo. São, por exemplo, o Armando Pinto, de Montalegre, ou o Nélson Gomes, de Covas de Barroso. O primeiro está aflito e criou a Associação Montalegre com Vida. O segundo, não menos aflito, criou a Associação Unidos em Defesa de Covas de Barroso. Calhou-me de os ouvir, de microfone na mão, num Prós & Contras transmitido do Porto (do Porto ou de Lisboa, claro!)). Um e outro destemidos, sem salamaleques e sem reservas mentais, a olharem nos olhos um Secretário de Estado que tinha vindo lá de Lisboa e cujo nome ainda há meia dúzia de dias nunca tinham pronunciado (nem tinham ouvido falar). Anima-os a ideia de salvar as suas terras (e as suas vidas). Mas anima-os sobretudo o direito a serem tratados com hombridade – não serem ignorados, participarem das decisões relevantes que implicam com as suas terras, as suas gentes e as suas vidas. No fundo, serem respeitados. Fiquei impressionado.

Já não estava em causa a discussão sobre as maravilhas do lítio e do processo de descarbonização (palavrão muito usado nos gabinetes lá longe da terra). Já não estava em causa a discussão sobre o equilíbrio entre os interesses coletivos e individuais, ou sobre a solidariedade territorial (entre recursos naturais e, já agora, na distribuição dos benefícios). Já não estava sequer em causa a pertinente discussão sobre a coerência e consequência das nossas opções (os dispositivos tecnológicos de que não prescindimos e as cedências que estamos dispostos a fazer). A discussão – que é pertinente – não era essa. Era, antes, a do respeito e da igualdade. A de dar-se ao respeito e de exigir igualdade de tratamento. Porque o Armando e o Nélson eram de Montalegre e de Boticas, mas merecem o mesmo tratamento que o Salvador, do Estoril, ou que o Tomás, da Foz, no Porto. Como se estivesse em causa a exploração de lítio na Serra de Sintra ou no vale de Campanhã.

Impressionou-me a determinação do Armando e do Nélson. Homens genuinamente das suas terras. Com a fibra de que reza a tradição «para lá do Marão». Até com a simplicidade e o sotaque autêntico das suas terras. E fiquei a pensar que mais do que o lítio faz-nos falta esse país autêntico e com sotaque. É pena que esteja tão longe. Que estejamos tão longe…

Volto a imaginar. Imagino-me a viver em Boticas, na freguesia de Covas do Barroso. E imagino que não estaria aqui. Provavelmente não estaria. No Ponto SJ e nos outros Ponto SJ, onde encontram espaço os que não são de Boticas, da freguesia de Covas do Barroso, ou de Montalegre, de qualquer uma das aldeias de Morgade, Carvalhais ou Rebordelo.

Eu sou o José Maria Montenegro, do Porto (mas apetecia-me assinar Armando Pinto ou Nélson Gomes, de Montalegre ou de Boticas).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.