Chegaram os bárbaros. Por estes dias, a Europa viu mais uma catedral gótica em chamas. O fogo que devorou os vitrais e o órgão da catedral de Nantes trouxe à memória o incêndio da simbólica Notre Dame de Paris, em 2019, e o de S. Sulpício, alguns dias antes. França tem um histórico elevado de actos de vandalismo em igrejas: em 2019, a polícia francesa revelou que entre 2016 e 2018 houve milhares de casos de vandalismo – uma média de 2,75 igrejas atacadas por dia –, com o pico a registar-se em 2017: 1045 casos contabilizados[1].
Nos EUA, os ataques tomaram feição mais iconoclasta: depois de queimarem igrejas, os manifestantes derrubam e vandalizam estátuas (Churchill, S. Junípero Serra, Nossa Senhora, entre outras). Em Lisboa, o P. António Vieira, pioneiro na defesa dos índios, foi vandalizado; em Coimbra Baden Powell foi decapitado; e até a representação icónica de Jesus Cristo é objecto de ódio, por ser o símbolo da opressão exercida pelo branco. A barbárie está de volta – desta vez às mãos de manifestantes que cresceram num estado de direito.
À campanha iconoclasta associam-se voluntariamente as autoridades. A deposição das estátuas de Isabel a Católica e de Cristóvão Colombo foi promovida por três políticos, entre eles a presidente do Senado da Califórnia.
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De onde vem este impulso de apagamento da memória e de destruição? Qual é o ideal em nome do qual lutam? A justiça?
Chamou-me a atenção um livro recentemente publicado por um professor de Harvard que retoma a questão da defesa das Humanidades em ordem ao pensamento político: James Hankins, Virtue Politics: Soulcraft and Statecraft in Renaissance Italy (Harvard University Press, 2019). Quem assiste a este regresso dos bárbaros ao Ocidente não lhe pode ficar indiferente.
O livro Política de Virtudes salienta o papel essencial da formação do carácter na formação da sociedade, tanto dos cidadãos como dos seus líderes. Segundo este eminente historiador, o que mais preocupava os humanistas do Renascimento não era reformar leis ou instituições, mas moldar os cidadãos. E fizeram-no através de um novo programa de educação a que chamaram studia humanitatis ou artes humaniores (hoje ‘humanidades’ ou liberal arts).
Para os humanistas, a legitimidade do governante provinha acima de tudo das virtudes do seu carácter. E assim respondiam a questões ancestrais do debate político: Como se reconhece um mau governante? Pode um bom homem servir um regime corrupto?
Com esta expressão anunciavam que o conhecimento das letras e das artes tornava os homens ‘mais humanos’, dando-lhes a conhecer a sua própria natureza. Para o ‘humanista’, o studium (que em latim significa dedicação, amor, zelo) era a nova forma de dignificação do homem. Os studia humanitatis seriam assim o zelo ou dedicação ao que é humano.
Do ponto de vista ético, era algo inovador: a elevação do homem à uirtus era alcançada pelo studium (o esforço individual, o talento e o trabalho), e não pela linhagem ou por qualquer outra sorte de privilégios sociais. É assim que se entende o binómio inseparável virtus et litterae dos colégios da Companhia de Jesus – instituições criadas para concretizar este ideal da humanitas comum, inseparável das litterae. O amor pelo saber conduzia à excelência moral, ou seja, à virtus.
Para os humanistas, a legitimidade do governante provinha acima de tudo das virtudes do seu carácter. E assim respondiam a questões ancestrais do debate político: Como se reconhece um mau governante? Pode um bom homem servir um regime corrupto? Que virtudes são necessárias a um líder? Qual é a fonte de legitimidade política?
Hoje temos uma vaga ideia de que uma pessoa que estudou numa Faculdade de Letras sabe falar mais além do seu mundo técnico-profissional, é uma companhia mais interessante para jantar, publica até uns livros de poesia, sabe tudo sobre feminismo e igualdade de género, e cumpre todos os dogmas do politicamente correcto. Porém, quando se trata de fazer uma carreira ou de governar o mundo, não temos uma visão séria sobre o que deve ser a educação em humanidades, nem sobre o lugar da memória colectiva num programa de estudos.
A chamada “educação liberal” foi progressivamente enfraquecida e desqualificada. O mesmo James Hankins[2] afirma que a ‘hermenêutica da suspeita’ da nova esquerda politizou a educação humanística. E começou a acusar a educação liberal e os livros do cânone de serem bastiões de privilégios; a afirmar que o verdadeiro objectivo daquela educação era manter as barreiras de classe; e que a tradição ocidental não passava de uma construção ideológica feita por intelectuais do regime, ao serviço do poder.
Quando se trata de fazer uma carreira ou de governar o mundo, não temos uma visão séria sobre o que deve ser a educação em humanidades, nem sobre o lugar da memória colectiva num programa de estudos.
A independência do corpo docente – continua – foi gradualmente desmantelada: “agora somos todos abelhas operárias, servindo o monstruoso regimento de burocratas”.
Com o objectivo de minar a autoridade do passado ocidental, os historiadores da nova esquerda focaram-se no racismo e no sexismo. E bloquearam a nossa capacidade de elogiar os antepassados. Tornou-se lugar comum obrigatório da historiografia denunciar as imoralidades do passado, sempre vistas do alto da nossa perfeição. Na medida em que as obras do cânone eram instrumentos de privilégio e opressão, foi preciso desacreditá-las e bani-las dos programas (para proteger os jovens da sua leitura).
O que esses historiadores não vêem é que elogiar antepassados é a condição de toda a civilização, como escreveu Rémi Brague e, antes de todos, Cícero, no seu discurso em defesa do poeta Árquias, magna carta do humanismo e das letras: honor alit artes. O louvor é o motor da arte e da cultura, a sua fonte nutritiva.
Assim, não é só a educação que está doente, é a cultura que está em evidente decadência. Senão, perguntemos, continua Rémi Brague. Será que ainda somos capazes de elogiar? Será que ainda estamos conscientes de possuir algo pelo qual estarmos gratos?
No lugar da memória colectiva pusemos o nosso ego inchado. O Culto do Ego (Le cult du moi), do escritor francês Maurice Barrès (1862-1923), conheceu muitos seguidores durante o século passado e ainda hoje se exprime sob vários nomes: desenvolvimento pessoal, auto-realização, auto-expressão, autenticidade, e assim por diante.
Será a criatividade em si mesma o objectivo da educação e cultura? O principal objectivo da cultura será “exprimir-se”? Então vale tudo, conclui Rémi Brague. E recorda um caso exemplar desses novos artistas do ego que tiveram a coragem de mostrar a sua auto-expressão: em Maio de 1961, o italiano Piero Manzoni (1933-1963) defecou em noventa latas, selou-as, e vendeu-as sob o título “M**da de Artista”.
O que Manzoni sem dúvida nos mostrou foi o absurdo da ideia da auto-expressão do artista. Mostrou que a humana “criatividade” por si só não é suficiente.
No lugar da memória colectiva pusemos o nosso ego inchado. O Culto do Ego (Le cult du moi), do escritor francês Maurice Barrès (1862-1923), conheceu muitos seguidores durante o século passado e ainda hoje se exprime sob vários nomes: desenvolvimento pessoal, auto-realização, auto-expressão, autenticidade, e assim por diante.
Privar as gerações daquilo que é a sua memória colectiva é deixá-las entregues a si próprias – para depois as governar segundo interesses. Desconsiderar a memória colectiva das gerações é o primeiro passo para desmantelar o seu património. Primeiro desqualifica-se o cânone literário, depois muda-se o paradigma (da educação, da arte, da cultura) e por fim acaba-se decapitando estátuas e incendiando catedrais góticas. O verdadeiro alvo serão os crentes?
Vivemos uma crise civilizacional que, segundo James Hankins, tem semelhança notável com a crise civilizacional do século XIV, que trouxe as humanidades à existência enquanto plano de estudos. Essa crise, tal como a vê o autor, é causada pelo vazio da liderança moral e pela incapacidade de, nos estados-nação, as elites globalizadas se fazerem respeitar pelos cidadãos. Não são poucos os que já afirmam que a virtude é precisamente o que falta às civilizações contemporâneas, desde a América do Norte e do Sul e da Europa até à Índia e à China.
Os humanistas ensinaram que as humanidades podem fornecer disciplina moral – a arte da alma – necessária para formar o tipo de governantes e cidadãos indispensável ao bom governo. As humanidades podem cultivar a excelência moral e intelectual humana, que a nossa tradição considera como virtude.
É neste sentido que James Hankins defende o estudo dos clássicos entre os valores de uma sociedade pluralista. Homero e Aristóteles têm um papel importante a desempenhar na formação do carácter. Com esse legado aprendemos que a polis são os cidadãos e não as muralhas nem os barcos viúvos de homens (Tucídides, 7.77.7).
Se a polis são os cidadãos, haverá melhor educação para a Cidadania e Desenvolvimento do que a formação do carácter do cidadão? E haverá melhor polis para viver do que aquela cujos cidadãos cultivam a excelência moral?
[1] Dados do Service Central de Renseignement Criminel (SCRC) da polícia francesa, avançados por Le Figaro.
[2] “Liberal Learning beyond Liberalism: The Humanities as Soulcraft in the Renaissance and Today”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.