“O projeto “Educação 2030” já havia contribuído com inovações, criando um novo normal em educação (…). A pandemia acelerou as inovações (…) trazendo a visão co-criada para mais perto da realidade.” (OCDE, 2020).
“As Aprendizagens Essenciais foram sujeitas a uma avaliação no subprojeto Curriculum Content Mapping, no âmbito do projeto Future of Education and Skills 2030, da OCDE.” (Despacho n.º 6605-A/2021).
No prolongamento do ano letivo determinado pelo Ministério da Educação, com vista a recuperar aprendizagens que a pandemia perturbou, foi publicado o Despacho n.º 6605-A/2021, que “procede à definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular”. As duas páginas que o compõem e a sua modesta condição de despacho, assinado por um secretário de estado, sugerem ser de menor importância. Interpretação enganosa: ele é, na verdade, um marco nacional, com sustentáculo supranacional.
A pouca atenção que lhe tem sido dada na imprensa recai sobre o que é mais óbvio no seu articulado: revogação de “Programas” e “Metas” para o ensino obrigatório, passando o núcleo curricular a ser composto pela tríade: “Aprendizagens Essenciais”, “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória” e “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania”. Contudo, o Despacho vai além disto: é o último capítulo de uma longa história que não se encontra encerrada. Explicarei, nas duas breves notas que se seguem, esta afirmação, tendo em conta o trabalho docente.
1. No início do século foi formalizada uma reforma curricular em documentos como: “Perfil cultural desejável do diplomado do ensino secundário” (1988), “Objetivos da educação escolar: ensino básico e ensino secundário” (1991) e “Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais” (2001). Dela faziam parte “Programas”, um para cada disciplina, alguns já existentes, outros construídos ao longo da primeira década. Resultando de apropriações teóricas distintas, a coerência estava longe de contar entre as suas características.
Na década seguinte, reforçando-se a ideia que se tornava cânone no cenário internacional, de que o ensino deve ser organizado por “competências” – não por “conhecimentos” –, foram redigidas “Metas de Aprendizagem” para cada disciplina. A orientação política que se seguiu, rejeitando o cânone e centrando-se nos conhecimentos a adquirir e nas capacidades a desenvolver, determinou a construção de “Programas” e “Metas Curriculares”, ainda que só para algumas disciplinas. A orientação política vigente, produziu os supramencionados “Perfil dos Alunos”, a “Estratégia de Educação para a Cidadania” e, para todas as disciplinas, uma aproximação à figura das “Metas”, que designou por “Aprendizagens Essenciais”. Porém, só agora revogou os documentos vindos do passado ainda próximo.
Uma segunda pergunta é inevitável: face à proliferação, desconexão e sobreposição de documentos, não se justificaria que a tutela fizesse um balanço e, em resultado, facultasse aos professores um suporte curricular substancial, claro e funcional com vista a cumprirem o direito à educação escolar? Sim, justificar-se-ia.
Aqui, há que perguntar: até à publicação do dito Despacho, que documentos deveria um professor, ciente da responsabilidade de atender ao currículo formal, usar para lecionar? Dependendo da disciplina e do ciclo, não seria de estranhar que usasse, pelo menos, o “Programa”, as “Metas” e as “Aprendizagens Essenciais”, sem perder de vista o “Perfil dos Alunos”. Era o caso das nucleares Matemática e Português.
Uma segunda pergunta é inevitável: face à proliferação, desconexão e sobreposição de documentos, não se justificaria que a tutela fizesse um balanço e, em resultado, facultasse aos professores um suporte curricular substancial, claro e funcional com vista a cumprirem o direito à educação escolar? Sim, justificar-se-ia.
2. Sucede que o suporte a que aludo desvia-se desse direito inalienável, ainda que insista em invocá-lo. Trata-se de um suporte que decorre direta e linearmente, não de princípios humanistas reconhecidos no campo da Educação, mas da crescente exigência externa para que a escola dê resposta cabal às necessidades do mercado financeiro mundial, regido, em termos de trabalho, por um projeto neoliberal consolidado na teoria do capital humano.
A entidade que, há mais de meio século, faz esta exigência aos Estados tem, desde o passado ano, reafirmado que a pandemia lhes oferece “a grande oportunidade” para implementarem a mudança curricular que delineia desde 2015 e que disponibiliza a todos aqueles que a quiserem aproveitar. Refiro-me à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), explicitamente mencionada no preâmbulo do Despacho n.º 6605-A/2021, como passou a acontecer, por regra, nos documentos oficiais.
Tal circunstância, que não se circunscreve ao nosso país, legitima a interferência direta na Educação de uma entidade cuja vocação e orientação se distanciam profundamente dos desígnios que a devem reger. Mais, naturaliza essa interferência ao nível político e, também, aos níveis académico, escolar e social. A estes fenómenos não é alheia a narrativa refinada, enigmática e impulsionadora que a organização elaborou, nem a abordagem pragmática, impositiva e de proximidade em que se especializou.
Colocando a tónica na aprendizagem, uniformiza-a e redu-la ao enigmático “essencial”. Este é o espírito das “Aprendizagens Essenciais” ou, em expressão anterior, das “Competências Essenciais”. Respondemos, enfim, de modo cabal, com este Despacho, aos seus ditames patentes, nomeadamente, no projeto The future of education and skills 2030 e no modelo que o operacionaliza – The OECD learning compass 2030 –, a que se seguem as recomendações do Curriculum (re)design e dos Four OECD scenarios for schooling. E não sem termos passado na avaliação prevista no Curriculum content mapping. Como recompensa, a poderosa organização, atenuando o enaltecimento à paradigmática Finlândia, tem-se referido a Portugal como exemplo de sucesso reformativo, sobretudo junto de Espanha, solicitada a responder de modo análogo.
Tal circunstância, que não se circunscreve ao nosso país, legitima a interferência direta na Educação de uma entidade [OCDE] cuja vocação e orientação se distanciam profundamente dos desígnios que a devem reger.
Em suma, o referencial curricular promulgado em 6 de julho guiará os professores portugueses do ensino básico e secundário, já a partir de setembro próximo, na árdua tarefa de levar os alunos a aprender. Resta saber se, pressionados para seguirem o caminho indicado, sem tempo para explorarem as mudanças, limitados nas possibilidades de as interrogar e estudar, serão capazes de atentar às inquietações que o seu pensamento formula.
Ciente destas e de outras contrariedades, convido-os, todavia, a fazê-lo, começando por esclarecer o que a historiadora Suncatala de Miranda designou por “plano de educação ocedeísta” , a que o nosso país cedo aderiu e que, nos anos mais recentes, retomou com redobrado compromisso. Por isso, mencionei um núcleo de publicações da OCDE , apurado entre a infinidade que é disponibilizada online. A sua leitura, parecendo acessível, não carecendo mais do que de um passar de olhos, requer, ao contrário, aprofundamento e questionamento perspicazes, o que ganha em ser feito entre profissionais, com recurso, evidentemente, a conhecimento específico da Educação.
O esforço não será em vão: por certo abrirá janelas para a reflexão que urge fazer sobre o direito à educação escolar, com implicações na tomada de decisão curricular que o ensino, a todo o momento, exige. Decisões que, sublinho, não podem deixar de ser orientadas pelo supremo dever ético de concretização desse direito democrático.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.