O elefante na sala

O problema, pois, não é a variante de português do Brasil. O grande elefante na sala é que muitas crianças portuguesas quando estão em casa só têm os seus telemóveis e o algoritmo mais perigoso do mundo por companhia.

Bota joínha galera! Já deixa o like aí.
Caraca, que mico! Iae cara? De boa?
Nossa véi. Vamo pá frente mermão.
Véi? mermão? Como assim?

 

Noticiava na semana passada o DN que há crianças portuguesas a falar fluentemente a variante de português do Brasil. Titulava o diário que “Há crianças portuguesas que só falam ‘brasileiro'”. E é (quase) verdade. Felipe Neto, Luccas Neto, JazzGhost ou o Gato Galáctico são youtubers brasileiros especializados no segmento infantil e cujos canais têm milhões de seguidores, respectivamente e nos aqui citados 43, 36, 11 e 10 milhões. São números que impressionam, pois equivalem grosso modo a 9 vezes a população portuguesa. E entre estes milhões de seguidores, uma pequena parte são pré-adolescentes portugueses.

Muitas destas crianças que falam “português do Brasil” desconhecem o equivalente na sua língua materna das expressões que utilizam. É como se o sonho do acordo ortográfico (AO90), que pretendia uniformizar a ortografia entre os países de expressão portuguesa, se tivesse tornado em hiper-realidade: não já apenas ao nível ortográfico – cuja unificação aliás parece cada vez mais inalcançável – mas ao nível sintático, lexical e semântico.

Por isso podemos dizer que os youtubers estão a operar uma pequena revolução não no modo como grafamos as palavras, mas nas expressões idiomáticas e no vocabulário utilizado. Em vez de WC, banheiro, em vez de autocarro ônibus, em vez de comboio trem, e em muitas outras palavras que se estão a popularizar: bala, suco, chope, sorvete, geladeira, xícara, café da manhã, tela, celular…

Trata-se, é claro, de um movimento que não começou agora. Esta transformação do corpo da língua e dos seus falantes não necessita ser vivida como um drama.

Por isso podemos dizer que os youtubers estão a operar uma pequena revolução não no modo como grafamos as palavras, mas nas expressões idiomáticas e no vocabulário utilizado.

As línguas são organismos vivos, muito resistentes à normatividade e à regulação heterónoma (de que as dificuldades de aplicação do AO90 aliás dão abundante testemunho). Mas ao mesmo tempo, e paradoxalmente, uma língua não pode não mudar. Saussure percebeu e explicou-o com toda a clareza no seu Cours de Linguistique Générale, ao apontar duas entre as cinco características fundamentais da língua: que estas são, paradoxalmente, imutáveis (resistem bravamente às alterações por decreto) e mutáveis (não podem não mudar com o passar do tempo).

Em boa hora. ainda falaríamos latim, ou galaico-português, se assim não fosse. É uma ingenuidade do falante querer cristalizar a língua no tempo em que fez a sua formação, tomando-a como a norma culta de um idealizado padrão, e descartando estrangeirismos e modernices posteriores a esses seus verdes anos. No fundo, mantendo-se fiéis à expressão da língua de que foram coevos na juventude. Ora, um falante cristalizar a língua seria como tentar deter a água de um rio abrindo as mãos para não a deixar passar. Não é nem possível, nem desejável.

Aliás, o facto de termos hoje tantos estrangeirismos no português possivelmente tem a ver com o conservadorismo na sua adopção. Empoderamento, evidências, tuítar, drinques, freezer são estrangeirismos aportuguesados comuns no Brasil, mas não em Portugal, onde se preferem, sobretudo na gíria tecnológica ou dos negócios, os estrangeirismos não traduzidos.

O problema, pois, não é a variante de português do Brasil, nem o enriquecimento do léxico feito por essa via. O grande elefante na sala é que muitas crianças portuguesas quando estão em casa só têm os seus telemóveis por companhia, e o Youtube – cujos conteúdos não são escrutinados nem auditados, e cujo algoritmo de recomendação automática é extraordinariamente perigoso – é o seu melhor amigo.

 

Fotografia por Kelly Sikkema – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.