Há umas semanas, a revista The Lancet publicou um artigo acerca do impacte transversal das alterações climáticas nos níveis de ansiedade em adolescentes e jovens adultos. Foi um artigo badalado, teve direito a um destaque na primeira página do Público. Passada a primeira bruma, é merecido que a ele voltemos e revisitemos esta questão.
Os resultados deste artigo são impressionantes: os jovens entrevistados, provenientes de 10 países da Europa, África e Ásia, estão ansiosos em relação ao progresso das alterações climáticas e crises ambientais. Na realidade, o estudo veio confirmar algo que já muitos intuíam: há pessoas, especialmente entre os mais jovens, que levam as alterações climáticas muito a sério, a ponto de lhes causar sofrimento. A principal causa documentada de ansiedade foi a desatenção (sobretudo de organismos governamentais) aos seus pedidos de ação e mudança.
As alterações climáticas estão aí, com efeitos de tal ordem que se tornam difíceis de ignorar. Ainda assim, foi necessário um estudo desta dimensão para, mais uma vez, reconhecermos a premência desta crise. Como esta, penso nalgumas realidades incómodas que, apesar dos dados, continuam a não nos incomodar: a fome mundial, a epidemia africana VIH-tuberculose, a desigualdade de rendimentos, etc. De formas crescentemente variadas e, talvez por isso, cada vez mais preocupantes, estas crises vão suscitando a nossa atenção e, apesar disso, somos capazes de as ignorar ou, pelo menos, de continuar minorando o seu impacte na nossa vida quotidiana. Onde está o problema, afinal?
Creio que o nó górdio está na forma como colocamos questões – ou melhor, como deixamos a realidade colocar-nos questões.
Creio que o nó górdio está na forma como colocamos questões – ou melhor, como deixamos a realidade colocar-nos questões. Há uns dias, um dos meus professores de Filosofia referiu que, apesar de ser o ofício do filósofo questionar, poucas vezes se pergunta o que é questionar bem. Fiquei com esta consideração na cabeça e ela fez-me voltar a este artigo, a estes jovens ansiosos com os dramas ambientais.
A pergunta permanece: onde está o problema nas questões que fazemos? O problema está na atenção. O Papa Francisco formulou um bom guia de maneira apelativa na Evangelii Gaudium: «A realidade é superior à ideia» (EG 231). Dito de outra forma, a realidade é maior do que aquilo que dela conheço. O Papa pretende inquietar-nos, para que nos mantenhamos abertos e responsivos ao mundo que nos rodeia, sem fechar as possibilidades no que conseguimos dizer ou formular. O apelo é estimulante, mas pode cair em saco roto se não for tomado a sério; fica apenas uma frase bem-soante no ouvido que repetimos em vácuo. Precisamos de ir mais fundo nesta interpretação, até aos fundamentos da nossa atenção.
Certamente é mais fácil a despreocupação. Quando estamos cansados ou mais aborrecidos, a última coisa que nos apetece é ver um telejornal cheio de misérias, mas rapidamente abrimos a Netflix para ver só um episódio – mas nunca é só um. E tampouco nos apetece demorar aquelas horas muito aborrecidas a compreender de que maneira é que os Pandora Papers interessam para a vida de tanta gente ou o que podemos fazer, como cristãos responsáveis, em relação a esta situação dramática dos abusos sexuais na Igreja. É mais fácil ficar quietinho, deixando que a realidade passe por nós sobrevoando, entorpecente.
A atenção tem na sua raiz o nosso assentimento. A realidade é o meio privilegiado que Deus usa para Se nos comunicar, isto nos diz o dogma da Incarnação.
A atenção tem na sua raiz o nosso assentimento. A realidade é o meio privilegiado que Deus usa para Se nos comunicar, isto nos diz o dogma da Incarnação. Todavia, a comunicação requer um emissor e um recetor, de maneira que, se não assentirmos a esta mesma realidade que nos interpela, nenhuma mensagem virá – diz o povo português, «o pior cego é o que não quer ver». Neste caminho, temos como luzeiro S. John Henry Newman. Muitos o conhecemos, sem saber, pelo seu hino Luz terna e suave, o seu grito a Deus no meio de um barco atormentado pela tempestade. Mas este grande teólogo, no seu Ensaio a favor de Uma Gramática do Assentimento, lega-nos uma intuição preciosa: o cume da nossa adesão, enquanto crentes, não está no abstrato nem no vago, mas nas coisas concretas. Aderimos ao concreto pois essa é a manifestação de Deus na nossa vida, o Seu convite a darmos fruto, a darmos corpo e forma ao Seu Reino.
O artigo do The Lancet e toda a resposta que provocou é, mais que tudo, um enorme sinal de alerta contra a nossa desatenção. A grande interpelação que nos faz não é a reconhecer o sofrimento que as alterações climáticas causam nos mais jovens em geral; é reconhecer o sofrimento causado nos jovens em concreto, em pessoas que nos rodeiam e com quem temos uma relação – não é preciso viver na mesma casa que a Greta Thurnberg!
São esses que me ensinam a estar junto dos mais pobres, porque me picam e desafiam na relação quotidiana. Ainda que isso seja muito incómodo e, às vezes, caia eu no refúgio de os ignorar deliberadamente. Mas assinto, porque sinto.
O que conta é a concretude que nos implica! A constatação seca e muito bem numerada não nos serve de muito, não é capaz de mover o nosso assentimento. O assentimento é, primeiramente, uma resposta afetiva à realidade que surge quando nos deixamos tocar, provocar, ferir pelo mundo concreto. Penso, no meu caso, em vários companheiros da minha comunidade que são bastante mais sensíveis do que eu às desigualdades sociais. São esses que me ensinam a estar junto dos mais pobres, porque me picam e desafiam na relação quotidiana. Ainda que isso seja muito incómodo e, às vezes, caia eu no refúgio de os ignorar deliberadamente. Mas assinto, porque sinto.
Estamos num ponto de viragem, numa fase de encerramento e recolha das muitas crises e trepidações que esta pandemia nos trouxe. Começam agora a ser descritos, em várias áreas, os efeitos a longo prazo da pandemia COVID-19; fala-se até de uma síndrome pós-COVID que cobre tanto sequelas físicas como psicológicas. Ao longo dos próximos meses, é provável que vejamos estes estragos aparecer à nossa volta com maior destaque, desde os telejornais às conversas rotineiras de trabalho ou na escola. A frequência certamente banaliza os assuntos e poderá ser este o caso. Podemos esperar que venha um outro artigo, publicado numa qualquer revista de alto impacte, para nos provocar a atenção.
Assentimos fazendo boas perguntas, que nos ajudam a compreender melhor, a conhecer melhor aquela circunstância ou aquela pessoa
Ou então podemos dar tempo para que a nossa realidade nos toque profundamente, para lá do corrupio e da novidade. Sim, vai-nos custar horas de Netflix e Instagram. Sim, vai dar-nos trabalho a perceber alguns assuntos duros e difíceis, a aturar umas secas. Mas este assentimento concreto é, na verdade, a abertura a colaborar com Deus na Sua obra de salvação – por outras palavras, abertura à felicidade. Assentimos fazendo boas perguntas, que nos ajudam a compreender melhor, a conhecer melhor aquela circunstância ou aquela pessoa; assentimos na pergunta, como forma de relação com os outros e com Deus. Talvez aí ganhe novo sentido o célebre apoftegma de S. Gregório de Nazianzo: “Só o que é assumido (diria eu, assentido) poderá ser salvo”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.