Numa reportagem recente da revista “Time”, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, alerta para as consequências devastadoras das alterações climáticas provocadas pela ação humana, afirmando que estamos perante a “batalha das nossas vidas”. Este alerta é indissociável da batalha pela sobrevivência que milhares e milhares de pessoas deslocadas por força dessas alterações do clima enfrentam todos os dias. No discurso proferido no Fórum das Ilhas do Pacífico, lembrou que: “Em 2016, mais de 24 milhões de pessoas, em 118 países e territórios, foram deslocadas por causa de desastres naturais, três vezes mais do que o número de deslocados por conflitos”.
Mas as implicações das alterações do clima vão muito para além do impacto na mobilidade humana e no aumento da sua escala e complexidade. António Guterres, que foi também Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, tem alertado para este facto. Estamos perante um desafio que interage e reforça outras megatendências globais, como o crescimento populacional, a urbanização e a crescente insegurança alimentar, hídrica e energética. Um desafio com implicações importantes para a manutenção da paz e segurança internacionais.
A mudança climática lança as sementes do conflito e o deslocamento das populações agrava-se quando o conflito eclode. A guerra na Síria é disso um exemplo. A Primavera Árabe é vista geralmente como a causa que levou à guerra. No entanto, uma seca de cinco anos no nordeste da Síria, precedeu o conflito e causou o deslocamento de cerca de 1,5 milhões de pessoas. Também as caravanas de migrantes rumo aos Estados Unidos integram grupos da Guatemala, Honduras e de El Salvador, que fogem da pobreza, da violência e da insegurança alimentar. Estes três países constituem o chamado “corredor seco” centro-americano, um dos mais vulneráveis do mundo a fenómenos extremos ligados ao El Niño. A imprevisibilidade dos ciclos da chuva e temporadas de seca mais longas, ameaçam plantações de subsistência que são a fonte de alimento de pequenos produtores rurais e indígenas.
Existem países com seca extrema, enquanto outros estão a afundar-se devido à subida do nível do mar e deixarão de existir. No mundo, não há regiões imunes às mudanças climáticas, embora haja regiões mais afetadas. O risco de deslocamento é superior em países com maior exposição a desastres naturais e elevada densidade populacional, sobretudo em áreas sem capacidade ou recursos suficientes para se prepararem adequadamente. A Ásia enfrenta mais riscos do que qualquer outra região: em 2015, uma percentagem de 85% das pessoas deslocadas por desastres naturais repentinos encontravam-se no sul e leste da Ásia. Em 2100, estima-se que 1/5 da população mundial, 2 mil milhões de pessoas, se possam tornar refugiadas, em virtude de alterações climáticas. Alguns países do sul da Europa têm sido sinalizados como regiões de risco, incluindo a Grécia, Espanha e Portugal.
Perante a vulnerabilidade de milhões de pessoas afetadas pelas alterações do clima, o desafio é também jurídico. Embora se utilize habitualmente o termo “refugiado climático” no direito internacional o conceito de “refugiado” aplica-se a pessoas que fogem da guerra ou de perseguição individual por razões de raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política e atravessaram uma fronteira internacional.
As mudanças climáticas afetam as pessoas no seu próprio país e estas tornam-se “deslocadas internas”, antes de a gravidade da crise as obrigar a transpor fronteiras. Assim, enquanto a Convenção de Genebra de 1951, relativa ao estatuto de refugiado, e respetivo Protocolo Adicional, fornecem um quadro jurídico internacional sólido para a proteção dos refugiados, não existe ainda um instrumento paralelo para as pessoas deslocadas em contexto de catástrofes e mudanças climáticas. Não obstante, o sistema internacional de Direitos Humanos protege também estas pessoas. Por exemplo, não devem ser devolvidas para um lugar onde as suas vidas sejam colocadas em risco ou onde possam sofrer tratamento desumano ou degradante.
Existem países com seca extrema, enquanto outros estão a afundar-se devido à subida do nível do mar e deixarão de existir. No mundo, não há regiões imunes às mudanças climáticas, embora haja regiões mais afetadas.
O enquadramento legal desta categoria de pessoas em busca de refúgio devido a alterações do clima poderá ser feito através da modificação dos instrumentos internacionais já existentes, como a referida Convenção de Genebra, ou através da criação de uma convenção internacional específica. Nesse sentido, existe já um texto regional, elaborado pela União Africana, que adotou uma convenção sobre a proteção e a assistência às pessoas deslocadas, embora apenas no plano interno dos países. Seria muito importante a consagração de um estatuto jurídico para os deslocados climáticos num documento internacional de âmbito universal, abrangendo o deslocamento interno e externo, bem como o reconhecimento específico de direitos fundamentais das pessoas, famílias e grupos forçados a migrar. Entre os direitos fundamentais a serem garantidos a deslocados ambientais, incluem-se o direito de não ser recusado pelo país de acolhimento, de satisfação de necessidades básicas e o direito ao reagrupamento familiar.
Acima de tudo, são necessárias vontade e coragem políticas para estabelecer um quadro legal claro que proteja as pessoas afetadas pelas mudanças do clima. Temos visto como muitos países se têm recusado a assumir responsabilidades e obrigações já previstas no direito internacional para com os migrantes e refugiados, adotando uma postura securitária. Face a estas e outras resistências, os avanços têm sido muito lentos. O Pacto Global das Nações Unidas para as Migrações Seguras, Ordenadas e Regulares, aprovado em dezembro de 2018, é o primeiro acordo global a apelar a uma abordagem comum para lidar com esta questão.
Será interessante ver quais os países que irão introduzir nas suas leis nacionais soluções de proteção para estas pessoas vulneráveis. Atentos os valores fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, alargado consenso político e tradicional visão humanista dos fenómenos migratórios, o nosso país tem aqui importantes responsabilidades.
Na verdade, “a batalha das nossas vidas” está a travar-se há já algum tempo e quase sem darmos por isso. Apesar dos repetidos alertas e evidências científicas, na falta de uma resposta global adequada as alterações climáticas provocadas pela ação humana e suas consequências catastróficas foram-se agravando, sendo muitas delas irreversíveis. O atentado à vida de pessoas, plantas, animais e a degradação do planeta onde vivemos está a ocorrer rapidamente e a uma escala sem precedentes na história da humanidade. Neste contexto, milhões de pessoas foram já obrigadas a deslocar-se das suas casas e o número tenderá a aumentar. Apesar de não terem ainda um estatuto reconhecido pelo direito internacional, estas pessoas necessitam de proteção e solidariedade urgentes. Ignorar o seu sofrimento e as suas necessidades de proteção constitui um erro, que apenas agravará tensões e gerará mais conflitos. Mas será que ainda vamos a tempo de vencer esta batalha? Será que a geração dos atuais decisores, seguindo o exemplo dos mais jovens, está disposta sequer a tentar? Só atuando poderemos dizer, como Paulo de Tarso, “combati o bom combate”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.