O tempo – esse indiferente e implacável elemento da vida – revela-nos, numa cadência tão previsível quão surpreendente, como são relativas (e subjectivas) as importâncias que nos dominam. Sejam elas pessoas ou acontecimentos, sejam elas mais ou menos celebradas, sejam elas mais ou menos sentidas na comunidade. O que é (ou o que foi) importante para mim, ou quem é (ou quem foi) importante na minha vida pessoal e colectiva é, em boa verdade, quase completamente relativo e subjectivo. Ao meu lado – mesmo ao meu lado – essas importâncias podem já não ter ou mesmo nunca ter tido importância alguma. E a cada constatação do desprezo pela minha sensibilidade e hierarquia, não evito (não consigo) dominar esse juízo de censura. Mas não sei, honestamente, se é justo esse meu voluntarismo.
Se para mim, nascido nos anos 70 do século XX, me reconheço nos brados e sobressaltos que se celebram a propósito da partida de um ex-presidente da República (ontem Mário Soares, hoje Jorge Sampaio), ou a propósito do 11 de Setembro (este ano em especial pela marca dos 20 anos), para muitos, e cada vez mais, já serão só nomes, só acontecimentos, em vertiginosa derrapagem rumo a uma mera nota de rodapé.
Parecerá ridículo, e porventura cruel para muitos, dizê-lo assim, mas nem que seja pelas permanentes lições a que nos convocam, os filhos (ter filhos) deviam ser uma condição obrigatória de vida. Porque com os filhos percebemos, sem cerimónia e sem resistência, como são presunçosas as nossas importâncias, os nossos juízos, as nossas hierarquias até.
«O 11 de Setembro foi assim tão importante, pai?», perguntava-me o meu filho do alto dos seus 15 anos (sim, já é mais alto do que eu). Como qualquer pobre e incrédulo pai nascido nos anos 70 do século XX, esgrimi os meus argumentos e contra-argumentos para justificar a fleuma da celebração (no fundo, para me justificar também na agenda colectiva em que me revejo). Não sei, sinceramente, se o atraí para o meu sobressalto. Percebi, sem pejo e sem filtro, que se o 11 de Setembro não está tão distante como o desembarque da Normandia da «cultura» do meu filho é porque os que o viveram dominam agora a agenda e, por isso, o impõem e assinalam com pompa. Mas é inelutável reconhecer a distância e, talvez, não a censurar à luz da nossa própria hierarquia.
Por estes dias, contudo, o «choque» entre pai e filho nem foi especialmente marcado pelo significado da queda das Torres Gémeas, pela loucura que se viveu em 2001 (que eu testemunhei, mas ele não), e pela mudança de perspectiva sobre o mundo e as novas tensões dominantes que aqueles aviões a explodir geraram. A partida de um ex-presidente da República, Jorge Sampaio, fez emergir ainda com mais incredulidade essa distância.
Ainda ontem Jorge Sampaio era o Presidente de Portugal, dominava a agenda com decisões definitivas, dirigia-se a todo o mundo em prime-time a propósito da luta pela autodeterminação do povo de Timor-Leste e no contexto da cerimónia de atribuição de um Prémio Nobel da Paz que nos marcou e orgulhou. E hoje, na hora em que partiu, eu participava e comungava da pompa e das honras que o país lhe destinava. Pois o meu filho – volto ao meu filho – com esforço e algum desprezo, perguntava-se «quem foi o Jorge Sampaio, pai?». O máximo que este pobre pai conseguiu foi, sem orgulho e já pouca autoridade, obrigá-lo à resposta «pois, foi Presidente da República não foi?» (já só foi um Presidente da República rumo à tal nota de rodapé que as gerações que o não viveram lhe reservam).
Há várias lições que esta distância me impõe. Algumas serão dolorosas, outras nem tanto. Mas todas moram algures no terreno da humildade.
Nem é tanto por mim, cuja importância se circunscreve, como a maioria de nós, a um pequeno círculo familiar. A verdade, contudo, é que a importância – mesmo a de um Presidente da República – se esfuma pelo mero decurso do tempo, pela renovação das gerações, pela lei da vida que nos leva, inelutavelmente, não só a nós próprios mas aos nossos contemporâneos. Pode ser duro e frequentemente injusto, mas o exercício de humildade que o tempo (e os filhos!) nos revelam deviam bastar para que não nos deslumbrássemos com o poder. O dos outros e, sobretudo, o nosso (se alguma vez nos couber).
Uma outra lição (e são tantas) tem mais a ver com os nossos orgulhos e com a presunção sobre os nossos filhos. Todos temos predileções pessoais – na literatura, na política, no desporto, na fé, na vida! E são elas que, em boa verdade, nos condicionam nas importâncias e hierarquias de vida. Quase instintivamente tendemos a projectar essas nossas predileções nos que nos rodeiam. E, em particular com os filhos, achamos que por osmose e sem resistência, hão de militar nessas predileções. É o tempo – sempre esse indiferente e implacável elemento da vida – que nos sujeita ao choque da justa liberdade de cada um.
Não há, obviamente, qualquer osmose entre pai e filho. Não é assim, não é mesmo assim. Nem eles importam acriticamente os nossos sobressaltos, cumprindo um percurso de cultura e orgulho ao serviço da nossa presunção. Nem nós somos o critério, por muito que, por vezes, não consigamos evitar a censura sobre a indiferença que nos surpreende. Talvez seja de trocar essa ideia de osmose pela de influência e exemplo. E, já agora, talvez seja também de aceitar a diferença de perspectiva que a idade e a geração impõem. Porque afinal, os filhos, surpreendentemente, ajudam-nos a perceber melhor a história e a sua importância. O que tanto vale para 11 de Setembro de 2001, como vale para um ex-Presidente da República na hora da justa homenagem pela sua partida.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.