Not all men, not always a man

O salto lógico que é preciso dar, partindo destas conclusões, para chegar ao nosso slogan inicial é pequeno, mas encerra uma tremenda injustiça.

Em várias manifestações de apoio a vítimas de violência sexual, tem-se ouvido o slogan “Not all men, but always a man” (nem todos os homens, mas sempre um homem). Assim foi, recentemente, num caso que chocou a nação francesa: um homem drogava a sua mulher para que esta fosse agredida sexualmente. Isto aconteceu ao longo de quase uma década e Gisèle Pélicot foi agredida sexualmente mais de 100 vezes. Todos, os mais de 80 agressores, eram homens. Este, como outros casos mediáticos, reforçam a ideia segundo a qual os agressores sexuais são todos homens. Vejamos como esta ideia assenta i) numa leitura enviesada dos dados; ii) numa visão social simplista da mulher; iii) num raciocínio errado e violento.

i) Uma leitura enviesada dos dados

Esta ideia encontra algum respaldo em relatórios e estatísticas oficiais. Olhando para o Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI), a percentagem de agressores sexuais do género masculino é de 96,9%. Poder-se-ia dizer que esta percentagem decorre da estrutura patriarcal da Igreja, mas, analisando o Relatório Anual de Segurança Interna (2023), constatamos que os arguidos em casos de abuso sexual de crianças são homens em 94,3% dos casos. Além disso, estes dois relatórios, escolhidos a título exemplificativo, estão em linha com outros relatórios e estudos. Aliás, na apresentação do Relatório Final, a CI apresentou um meta-estudo que, com base em 217 outros estudos, concluía que a percentagem de agressores sexuais homens está entre 85 e 95%.

É, pois, indesmentível que a esmagadora maioria dos agressores sexuais é do género masculino. Assim, também é correto afirmar que a violência sexual tem uma componente de género e que é reflexo de uma herança machista que se faz sentir, de forma expressiva, ainda hoje, na nossa sociedade. Parece-me que é justo afirmar tudo isto.

O salto lógico que é preciso dar, partindo destas conclusões, para chegar ao nosso slogan inicial é pequeno, mas encerra uma tremenda injustiça. Mais do que uma falta de rigor – aspeto comum a todas as generalizações –, a ideia de que os agressores sexuais são sempre homens torna invisíveis todas as vítimas de violência sexual cometida por mulheres. Ora, segundo o meta-estudo referido, tal corresponde a 5 a 15% das vítimas de violência sexual. Note-se, ainda, que há especialistas que entendem que este fenómeno pode estar subestimado, atendendo ao viés que, de seguida, se verá.

ii) Uma visão social simplista da mulher

As mulheres, tradicionalmente, são vistas como uma figura cuidadora e protetora, sobretudo no que toca à criança. Esta visão decorre do sentido social atribuído à maternidade, que contamina a imagem social atribuída à mulher como um todo. É a mulher quem carrega a criança, no período da gestação, é ela quem amamenta, etc. Longe de querer discutir a pertinência ou justiça desta visão, importa, apenas, que se parta dela para perceber o viés com que se analisa a questão da violência sexual.

Esta imagem social associada à mulher parece influenciar de tal forma a perceção da realidade da violência sexual que, mesmo que os estudos apontem para a existência de (poucas) agressoras sexuais do género feminino, é-nos difícil aceitar esta mesma existência, banalizando-se slogans construídos sobre a generalização de que todos os agressores sexuais são homens.

Esta imagem social associada à mulher parece influenciar de tal forma a perceção da realidade da violência sexual que, mesmo que os estudos apontem para a existência de (poucas) agressoras sexuais do género feminino, é-nos difícil aceitar esta mesma existência, banalizando-se slogans construídos sobre a generalização de que todos os agressores sexuais são homens.

iii) Um raciocínio errado e violento

Numa visão binária do género (que é aquela que é tida em conta nos Relatórios a que recorremos), uma pessoa não pode ser simultaneamente homem e mulher. Ora, se todos os agressores são homens, então não há nenhum agressor que seja mulher. Além disso, para haver uma vítima de violência sexual, tem de existir um agressor que sobre ela exerça violência sexual. Se não existem agressores sexuais do género feminino, então não existem vítimas de violência sexual a partir de atos cometidos por mulheres.

Seguindo esse raciocínio, se alguém for exposto precocemente à pornografia por uma mulher, esse alguém não foi agredido sexualmente. Se alguém for sujeito a atos exibicionistas por parte de uma mulher, esse alguém não foi agredido sexualmente. Se alguém foi masturbado por uma mulher, sem o seu consentimento, esse alguém não foi agredido sexualmente. Se alguém foi forçado a penetrar uma mulher, esse alguém não foi agredido sexualmente.

Este caminho lógico poderá ser aquele que uma vítima pertencente à referida margem dos 5 a 15% fará. Esse alguém, acreditando na premissa composta pelo slogan inicial, não terá outro remédio que concluir que não foi, afinal, sujeito a nenhuma forma de violência sexual.

Esse alguém terá, em primeiro, de conseguir, através da sua razão, afastar uma tão injusta quanto infeliz trilogia que assola as vítimas de violência sexual – o medo, a culpa e a vergonha – para concluir que foi, de facto, vítima dessa forma de violência. Em segundo lugar, esse alguém terá de fazer face a uma sociedade que tem enraizada a crença de que ela/ele não pode ser uma vítima de violência sexual, uma vez que a agressão foi cometida por uma mulher.

Então, esse alguém, depois de ter sido vítima de violência sexual, passa pela dolorosa experiência de ser revitimizado, sendo, desta vez, vítima de violência psicológica. De entre muitos danos psicológicos que esta agressão pode causar, conta-se a possibilidade da própria pessoa não conseguir ver-se como vítima. Não será essa a maior das violências que se pode exercer sobre uma vítima – negar-lhe o direito a ver-se enquanto tal?

Assim, longe de palavras de ordem certeiras, não consigo ver no slogan “Not all men, but always a man” senão uma violenta armadilha para parte das vítimas de violência sexual, remetidas ao silêncio por causa de uma leitura enviesada de dados, um entendimento social simplista e um raciocínio erróneo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.