Nós e eles…

Tomando consciência das múltiplas ocasiões em que fomos e somos esses «eles», mesmo não sendo os tais políticos de que nos queixamos, entra a pergunta mais difícil: como somos «nós» quando somos «eles»?

A ideia – a sedutora e mediatizada ideia – de que vivemos uma crise de líderes, de representantes, de políticos em geral, que, depois, desagua num vazio de propósitos coletivos, identificáveis e mobilizadores, é tão incontestável quanto ambígua. Sim, ambígua. Porque é uma ideia (ou um diagnóstico) que tem muito pouco de consequente, que se fica comodamente pela conclusão e que não penetra na consciência pessoal (que é sempre onde se gera a eventual e desejável mudança).

É nesta ambiguidade que se inscreve o «nós» e «eles» a que deu eco o João Miguel Tavares no seu tão propalado discurso do 10 de Junho último.

Não é propriamente a imagem do «nós» e «eles» que aqui enjeito – porque corresponde a um sentimento geral que tem arrimo nos factos tal como os podemos descrever e testemunhar. O que enjeito nesse «nós» e «eles» é o que venha a ser isso do «nós» e «eles», ou quem são, afinal, os «nós» e os «eles» que protagonizam o ambiente de crise que sentimos. Porque não chega preencher esses grupos com base na divisão fácil em que de um lado estarão os «cidadãos comuns» (nós) e do outro os «políticos» (eles). Isso, convenhamos, qualquer um, com mais ou menos eloquência e de voz mais ou menos grave, saberá fazer dos púlpitos a que possa aceder ou, pelo menos, de um qualquer teclado ou smartphone à sua disposição.

A pergunta a colocar é parecida, é igualmente simples, mas é outra. E, em boa verdade, são duas.

Como somos «nós» quando somos «eles»? E quando é que «nós» somos «eles»?

Eu talvez começasse por dizer que o grupo do «eles» não se esgota, nem sequer se justifica, na classe dos «políticos» (os deputados, os governantes, os conselheiros de Estado e, nestes, todos os ex «dos últimos 40 anos», como gostamos de dizer). Esses estarão lá, com certeza, mas poderão nem ser os mais proeminentes. Porque o «eles» corresponde, no fundo, à posição de liderança, de supremacia e, naturalmente, de superioridade hierárquica. E, vistas as coisas assim, não faltam circunstâncias e lugares em que muitos de «nós» ocupam esse grupo do «eles».

Que líderes, (que «eles»!) somos nós nas muitas e frequentíssimas circunstâncias em que nos cabe cuidar dos muitos «nós» que nos são confiados?

Qualquer professor num anfiteatro aos olhos dos alunos que tem pela frente. Qualquer gerente de uma empresa aos olhos dos colaboradores que gere. Qualquer diretor de serviço num hospital aos olhos dos jovens a estudar para o exame de especialidade. Qualquer juiz de um tribunal superior aos olhos dos auditores do Centro de Estudos Judiciários. Qualquer patrono aos olhos dos advogados estagiários. Qualquer pároco no púlpito da sua Igreja. Ou, até, qualquer pai ou mãe aos olhos dos seus filhos pequenos na hora de os mandar para cama (ou em qualquer outra). E podíamos elencar aqui milhares de circunstâncias e lugares. Pois qualquer um destes (professor, gerente, diretor de serviço num hospital, juiz de um tribunal superior, patrono, padre, pai ou mãe) está inelutavelmente no grupo dos «eles» aos olhos daqueles que, pelo estatuto, hierarquia ou até temor, os olham do grupo dos «nós».

E se é assim – porque é assim – tomamos logo consciência das múltiplas ocasiões em que fomos e somos esses tais de «eles», mesmo não sendo (nem querendo ser) os tais políticos de que nos queixamos. E é aí que entra a pergunta mais difícil. Como somos «nós» quando somos «eles»?

Praticaremos a exigência que exigimos (o pleonasmo aqui faz sentido) quando nos cabe olhar do grupo dos «nós»? Contrariaremos a ideia – a sedutora e mediatizada ideia – de que vivemos uma crise de líderes? Que líderes, (que «eles»!) somos nós nas muitas e frequentíssimas circunstâncias em que nos cabe cuidar dos muitos «nós» que nos são confiados? Seremos esse referencial de correção? Seremos, como reivindicamos, portadores de propósitos firmes, claros e inspiradores?

É que no fundo, se tomarmos consciência da ambiguidade dessa clivagem entre o «nós» e «eles» e não nos eximirmos a ir para lá do diagnóstico e da conclusão, aperceber-nos-emos que diante desses púlpitos e desses teclados, de onde protestamos e exigimos, está um espelho bem largo onde se projeta a imagem de um «eles» que se diz «nós». E perceberemos, de preferência com alguma humildade e pudor, que a crise está instalada e é também pessoal. E, portanto, que a urgência de liderança e propósitos haverá de começar a ser suplantada pessoalmente. Em todos nós. Que somos eles. E, como em tudo, é sempre esse – e deve ser sempre esse – o início do caminho.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.