Há 50 anos muita coisa mudou no país e, por arrasto de um império colonial em fim de ciclo, em várias outras partes do mundo. Na tal madrugada que tantos esperavam e em que o dia inicial inteiro e limpo nos permitiu emergir da noite e do silêncio para, livres, habitarmos a substância do tempo, como a imortalizou Sophia, a promessa de democracia e liberdade deu os seus primeiros passos. Para a minha geração e gerações seguintes, que sempre viveram em liberdade, os últimos 50 anos foram vividos sem medo de falar, sem censura, sem guerra colonial, sem medo do futuro. Mas a revolução, como sempre acontece, não cumpre as suas promessas no instante imediato. A revolução, apesar de frequentemente associada a mudanças rápidas e abruptas, na realidade, envolve processos mais lentos e graduais. As transformações fundamentais levam tempo para se manifestarem plenamente na sociedade e, num tempo em sucessiva aceleração do tempo, a paciência para aguardar a mudança esgota-se antes que a revolução tenha tempo para se cumprir.
No seu diário, Miguel Torga, após o vivido dia 1 de maio de 1974, com manifestações cheias de slogans e gentes, revela-nos que se sentia entre a esperança de um amanhã novo e a certeza de que a liberdade era uma obra (ainda) para ser realizada. A sua frase, de um homem então com apenas 67 anos, define todo um tempo em que esperança e liberdade só duram na imortalidade do momento, “a velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez”. Esta frase, melancólica e lúcida, sempre me impressionou. A possibilidade de mudança parecia ser, poucos dias após a revolução, simultaneamente promessa e mero sonho. Momentos de pura esperança e liberdade, como aqueles dias entre o 25 de abril e o de 1 maio de 1974, são raros e transitórios, mas, ao mesmo tempo, eternizados na memória coletiva e na experiência vivida de cada um. A preciosidade desses instantes de clareza ou felicidade, embora passageiros, são fundamentais e transformadores.
Comprovando a perenidade dos momentos edificadores, numa sondagem recente, dois terços dos inquiridos elegem o 25 de Abril como a data mais importante da História de Portugal e como um momento fundador da identidade e dos valores contemporâneos em Portugal. No entanto, ainda em 1974, um dos autores da liberdade cantada, Sérgio Godinho, escrevia uma oração à Liberdade mostrando-nos os seus limites fundadores: “só há liberdade a sério quando houver, a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Se ainda hoje trauteamos a música e nos sentimos porta-vozes destes desígnios é porque elas se atualizam no nosso quotidiano e nos gritam a sua pertinência. A canção “Liberdade” reflete, ontem como hoje, uma compreensão de que as liberdades civis são inseparáveis das liberdades sociais e económicas e a sua atualidade mostra que, em 50 anos, ainda não chegámos ao fim do caminho.
Fazer a liberdade funcionar de modo que os direitos sociais básicos sejam parte integrante do nosso património comum de direitos humanos requer uma combinação de políticas públicas eficazes, compromisso cívico, educação e colaboração intra e interinstitucional, nacional e internacional. Hoje, 50 anos depois do 25 de abril, Portugal está muito mais preparado para as mudanças que nos levem a uma liberdade a sério. A educação como alicerce fundacional foi-se expandindo pelo país, do ensino pré-primário ao ensino superior, capacitando homens e mulheres de hoje e do futuro. A massificação da educação, a sua relevância estatística, mediática e política, porém, impediu que quantidade e qualidade construíssem o par virtuoso que gostaríamos que fosse. Há que investir mais recursos no sistema educativo para que o retorno seja mais frutuoso. Em cada ciclo de estudos não basta ter mais diplomados, temos também que conseguir formar (muito) melhores diplomados.
Hoje, 50 anos depois do 25 de abril, Portugal está muito mais preparado para as mudanças que nos levem a uma liberdade a sério.
No que respeita à habitação, os últimos anos mostram a desadequação de um país cheio de casas vazias e, simultaneamente, como falam os muros grafitados, “de tanta gente sem casa”. A coexistência de casas vazias e de pessoas sem acesso à habitação adequada revela falhas estruturais que têm de ser abordadas por políticas públicas bem pensadas. A demografia portuguesa, aliada à territorialização das populações nas últimas décadas, tem mostrado que o país imaginado é bem diferente do país real. A desertificação humana de vastas áreas do território, o envelhecimento demográfico e as migrações são hoje pressupostos fundamentais para quem desenha a estratégia para o nosso futuro comum e, no caso da habitação, são/devem ser a sua base de planeamento.
De entre as potenciais medidas promotoras de uma maior coesão social e territorial destaco a possibilidade de desenvolver programas que incentivem a migração de pessoas para áreas menos povoadas através de incentivos como subsídios para habitação, oportunidades de emprego e melhorias nas infraestruturas, designadamente nos transportes e acessibilidades, na oferta educativa e nos serviços de saúde.
Considerando as dinâmicas económicas contemporâneas, incluindo a globalização, a digitalização e as mudanças demográficas, a promoção do emprego e da empregabilidade têm que prever variáveis novas como compatibilização entre trabalho e vida familiar, entre trabalho e sustentabilidade e, até, entre trabalho e ciclos de vida diferenciados. Desenvolver políticas que considerem as necessidades dos trabalhadores em diferentes estágios de vida deve incluir apoios para jovens que estão a chegar ao mercado de trabalho, programas de requalificação para profissionais em transição de carreira e oportunidades adaptadas para trabalhadores mais velhos, como parte de uma abordagem de aposentação ativa gradual. Só uma abordagem holística – que todavia carece ser implementada de forma eficaz – ajudará a criar um mercado de trabalho mais resiliente e adaptativo, trazendo o pão para a mesa de todos, reduzindo a pobreza e potenciando uma maior justiça social.
Investir significativamente em programas de prevenção de doenças e promoção da saúde, centrando as políticas no incentivo a estilos de vida saudáveis que incluam uma alimentação adequada, atividade física regular e combate ao tabagismo e ao consumo excessivo de álcool é também um pressuposto das conquistas de abril. A ciência ajudou-nos a compreender que os limites físicos da nossa saúde individual e coletiva são explicados, muitas vezes, por determinantes sociais. A nós resta-nos assumir os ensinamentos científicos e mudar os nossos comportamentos individuais. Ao Estado incube, de entre múltiplas funções, garantir que todos os cidadãos tenham acesso a serviços de saúde de qualidade, independentemente da sua situação económica ou localização geográfica; desenvolver sistemas de saúde que integrem mais eficazmente os cuidados primários, secundários e terciários, garantindo que os cuidados sejam contínuos e coordenados; assegurar que medicamentos essenciais e tratamentos inovadores estejam disponíveis a preços acessíveis.
Cumprir as promessas do 25 de abril de 1974 não é um desiderato dos capitães de abril, mas um trabalho de todos nós e das gerações futuras. Cada um de nós tem um papel a desempenhar.
Termino com a mais importante das evocações de Abril e com uma homenagem ao companheiro e camarada de luta pela justiça social que foi o Padre Zé Maria Brito. Há pessoas que pela sua presença, vontade e autoridade moral tornam o nosso mundo uma casa comum e que, na sua ausência, nos fazem sentir que uma parte da nossa humanidade e humanismo se devem afinal a quem, como eles, nos desafiam a ser plenamente humanos. Obrigado Padre Zé Maria Brito pela presença na minha vida e pelo humanismo com que contaminou o mundo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.