No sótão de Rilhafoles

“Coisas de loucos” de Catarina Gomes, com uma escrita límpida, despojada de artifícios retóricos e do adjetivo fácil, é um livro sobre vidas adiadas, mas sobretudo sobre vidas truncadas, vergadas, tortuosamente reviradas para dentro de si.

Foi apresentado ontem, dia 6 de setembro, na Feira do Livro de Lisboa, o terceiro livro de Catarina Gomes, Coisas de Loucos,: o que eles deixaram no manicómio, com fotografia de Paulo Porfírio (segue-se a Pai, tiveste medo?, 2014, e a Furriel não é nome de pai, 2018). O livro saiu em julho, mas este ano muitos momentos da nossa vida ficaram adiados “pelos motivos óbvios”, como rezava, chistoso, o aviso de encerramento dos barcos do Campo Grande em Lisboa durante as semanas do confinamento.

Este é um livro sobre vidas adiadas – por motivos nada óbvios e menos ainda justos – mas sobretudo sobre vidas truncadas, vergadas, tortuosamente reviradas para dentro de si.

Se a linha do tempo é uma reta lançada no infinito, que cremos (e queremos) inspirador, auspicioso, a linha da vida das pessoas sobre quem Catarina Gomes escreve foi retorcida até se perder no emaranhado do anonimato, dos arquivos cumulativos e anódinos, do registo mecânico e displicente, do abandono coletivo, afastados da comunidade, mas também afastados de si (por exemplo, décadas a fio, aos doentes não era permitido sequer ter um espelho).

As coisas do título são os objetos guardados numa caixa de papelão velha, que Catarina Gomes abre no sótão do antigo hospital Miguel Bombarda.

As coisas do título são os objetos guardados numa caixa de papelão velha, que Catarina Gomes abre no sótão do antigo hospital Miguel Bombarda. Os loucos são os doentes que aí residiram durante diferentes períodos de tempo desde a abertura do Hospital de Rilhafoles em 1848 (o nome do hospital ficou “famoso” com o escândalo da revista Orpheu em 1915, tendo o grupo de Fernando Pessoa sido apelidado de “artistas de Rilhafoles”), até ao encerramento do Hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, em julho de 2011, que a jornalista acompanhara e relatara para o jornal Público em “Eles fecham o último capítulo do Bombarda”.

Nessa caixa no sótão de Rilhafoles estavam objetos amontoados, dispersos, fragmentários, mas foi neles que a autora começou a ver para lá do que eles deixaram no manicómio. Sim, porque o subtítulo explicativo do livro fica aquém do que podemos efetivamente encontrar nas suas páginas: a Catarina Gomes parte dos objetos, é certo, mas o movimento de procura e consequentemente da narrativa é sobre os indivíduos, sobre eles, para lhes restituir o direito ao nome, à data de nascimento, à profissão, à família, à morte.

A capa de Vera Tavares vai muito para lá do grafismo elegante, oferecendo-nos uma leitura do livro em profundidade: caras incompletas – faltam olhos, faltam bocas, nariz ou cabelo – rodeados por objetos suspensos. São como peças de um puzzle vital em que porventura encaixarão, completando aqueles rostos. Porque essas peças conferem identidade, são a memória quase invisível e quase perdida de gente que não importa(va), resgatada agora pela persistência rigorosa e compassiva de Catarina Gomes.

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© Pedro Serpa / Tinta-da-china

 

Há uma nudez nestas páginas carregadas de vidas dolorosas, mas despidas de ruído, como se a dor se sentisse num abismo permanente e silencioso. O abismo não é o alto de um precipício, mas o centro de um panótico, que prende o doente a uma vertigem sem saída. O abismo é o não-lugar de uma existência suspensa para sempre. E o silêncio é, afinal, a ausência de palavras coerentes, do verbo que constrói o mundo na sua lógica, na sua estrutura vital, que para ser completa tem de erguer-se sobre memórias e sobre sonhos. Como dizer esta vida se ninguém ouve? Como continuar a escrever cartas se ninguém as lê? Como sair se a porta está fechada, se não há porta? Como saber de si, sem ser o outro de alguém? Por isso, suspendemos a respiração quando ouvimos Isabel Proença Chaves dizer “Sim, o meu tio Simão” (p. 114), e não saímos de dentro da angústia ao ler excertos das sucessivas cartas de Ricardo Vinte e Um: “A paciência esgota-se perante tanto sofrimento injusto, […] quero sair deste curral” (p. 235).

A escrita de Catarina Gomes é uma escrita límpida, despojada de artifícios retóricos e do adjetivo fácil. Mas não é insensível, pelo contrário. Ela debruça-se sobre cada objeto, sobre cada vida, como um trauerarbeit, um processo de luto singular, anacrónico e externo, mas redentor. Coloca o leitor desde logo no centro do processo e do lugar; é justamente assim que começa o livro: “Se nos colocarmos algures no meio deste recinto murado […]” (p. 15). Desse “enclave de vida” não saímos mais. Ficamos presos, angustiados pelo confinamento das paredes redondas, das janelas altas e estreitas, dos pavilhões lúgubres. Como se fôssemos nós e os nossos. Mas não nos enganemos, não somos, não são. A vida tolhida não é a nossa. Foi a deles. Este pronome definido que é o nome de Leopoldina, de Noé, de Simão, Manuel, Valentim, Clemente, Ricardo e Jaime.

Nestes nomes podem estar todos os nomes, do antes e do agora. Na história do Miguel Bombarda (que se completa, humana, com este trabalho) está também a história, pouco épica, da psiquiatria em Portugal. Hoje dá-se mais atenção à doença mental, entende-se que a sua abordagem passa por terapêuticas multidisciplinares, e os doentes não ficam desapossados de si, despojados das suas coisas. Continua a haver muito para fazer ao nível médico e político, e não é este o lugar certo, nem esta a interlocutora, para um tal debate. Coisas de Loucos, porém, é um eminente contributo para a visibilidade do tema porque é feito através das pessoas. Porque o sujeito deste assunto não é “a saúde mental”, mas o paciente, o indivíduo.

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© Pedro Serpa / Tinta-da-china

Catarina Gomes nunca desiste de des(en)cobrir a pessoa a quem pertence aquele objeto (que pertence àquele objeto). Veja-se a história de Noé Galvão (pp.65-90) encontrado a partir de uma caixa cheia de ponteiros de relógio. Ia escrever que a descoberta foi fruto “de um autêntico trabalho de detetive”, mas detive-me no lugar-comum e na evidente imprecisão. O trabalho de Catarina Gomes é antes um autêntico trabalho de jornalista. Do melhor jornalismo. Do jornalismo que faz perguntas (o título do seu primeiro livro é uma pergunta), diretas ou indiretas. Não são perguntas morais, que julgam. São perguntas deixadas suspensas, aumentando o vazio da ausência de respostas.

Escrita sem alarde, com o sossego dos desassossegados, alerta, insistente, persistente e – nota-se – com muito tempo. Ora, o tempo é um privilégio proporcionado pela bolsa de investigação jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian que financiou esta investigação, inicialmente publicada no diário Público. E, neste caso, como em tantos outros, o tempo é também sinónimo de dignidade e respeito.

Coisas de Loucos lê-se como um romance, mas não é ficção. É a mais crua realidade, a mais dura evidência dos que deixámos atrás.

O último capítulo do livro não tem palavras, só as fotografias de Porfírio. São os “Objetos Soltos” que Catarina Gomes não quis abandonar e que nos deixa, como que continuando o movimento incessante de remissão do passado que é, sempre, um movimento salvífico de futuro.

Fotografia de capa: © Pedro Serpa / Tinta-da-china

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.