Conheci recentemente o jovem Mohamad (nome fictício), de nacionalidade paquistanesa, resgatado no Mediterrâneo pelo barco humanitário Aquarius. A história do resgate de mais de uma centena de pessoas, incluindo dezenas de crianças, fez notícia em 2018 nos media. Durante vários dias o barco não foi autorizado a aportar em solo europeu. Finalmente, a tripulação desembarcou em Malta, sob compromisso de seis países da União Europeia, incluindo Portugal, distribuírem entre si as pessoas resgatadas por esta embarcação. Mohamad foi acolhido numa localidade do interior do país. Mas desde 2018 que aguarda uma decisão relativa ao pedido de asilo e o seu Título de Residência Provisório está caducado, aguardando renovação. Ele e muitos outros em situação semelhante, desesperam com esta longa demora e a dificuldade de renovação atempada dos documentos, como bem denuncia a reportagem do Jornal Público deste sábado 15.
Para trás ficou o país de origem, o perigo e um duro caminho até à Líbia, onde “estava a morrer aos poucos” – diz. Agora, apesar da paz e segurança em Portugal, a incerteza quanto ao seu futuro permanece. Tem a vida em suspenso e um misto de tristeza e esperança no olhar: “Sabes, há muitas espécies de morte. Tive que deixar o meu país… E cheguei à Líbia. Ali as pessoas são tratadas sem humanidade, pior do que animais. Também as mulheres e crianças… Os negros, pior ainda, não valem nada. Lá, eu já teria morrido”. Depois baixa a cabeça e perde-se noutro mar, o das memórias que não o deixam dormir à noite. O seu testemunho coincide com outros relatos de atrocidades na Líbia reportadas por diversas organizações de defesa dos Direitos Humanos, que incluem centros de detenção onde migrantes são mantidos em condições desumanas e degradantes, violentados e torturados (com armas de fogo, com recurso a choques elétricos, queimaduras, chicotadas) e submetidos a todo o tipo de violência física e psicológica.
Desde a queda do regime de Muammar Kadhafi em 2011, a Líbia está imersa no caos político, a que acrescem divisões e lutas internas entre milícias e tribos. Este país tem sido um terreno fértil para as redes de tráfico ilegal de migrantes e de situações de sequestro, tortura e violações em centros de detenção sobrelotados e precários. No dia 19 de dezembro de 2019, o Papa Francisco apelou ao encerramento dos centros de detenção de migrantes na Líbia, onde ocorrem práticas “ignóbeis de tortura e escravatura”, apelando aos salvamentos no Mediterrâneo. Mais recentemente, o Secretário-Geral da ONU reiterou que a Líbia não é um porto seguro e instou todos os países membros a “revisitar políticas que apoiem o retorno de refugiados e migrantes”. Em 31 de janeiro, o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa exortou a Itália a “suspender urgentemente” a cooperação com a Guarda Costeira da Líbia “até que existam garantias claras de conformidade com os direitos humanos”.
Mas este tema é demasiado sério para aceitar os resultados das estratégias que têm vindo a ser adotadas com vista a manter os migrantes longe das nossas fronteiras.
Apesar de todos estes apelos, a cooperação entre a Itália, autoridades da União Europeia e a guarda costeira da Líbia continua. Há apenas alguns dias atrás, 12 de fevereiro, a equipa do avião de reconhecimento Moonbird, operado pela ONG Sea Watch, testemunhou uma operação de retirada de dois barcos pela guarda costeira da Líbia, assistida pela aeronave Frontex Osprey. Todos os migrantes foram devolvidos para a Líbia, com a conivência das autoridades da União Europeia. Relatos de ONGs denunciam o desespero das pessoas resgatadas quando percebem que serão devolvidas para portos não seguros, algumas ameaçam atirar-se ao mar ou imolar-se pelo fogo.
Salvar vidas em perigo no mar é fazer o que está certo e o que é humano, respeitando valores éticos e direitos consagrados em Tratados e Convenções a que Portugal e outros países estão vinculados. Aqui temos que agir com determinação e sem desculpas. Não faz sentido resgatar vidas ao mar para as colocar em perigo pouco tempo depois, conduzindo as embarcações de migrantes a um destino não seguro e sem garantias de acesso ao procedimento de asilo. Ainda que toda a vida humana tenha igual valor e dignidade, existe a obrigação no direito internacional de proteger as pessoas refugiadas, forçadas a fugir do seu país em virtude de perseguição individual ou de guerra. A determinação do estatuto de refugiado ou imigrante não pode ser feita em alto mar, como é óbvio. Mas através de um processo justo e imparcial, após o resgate, no qual as pessoas sejam tratadas com dignidade e respeito pelos seus direitos fundamentais em todas as fases do processo. O Princípio do Non Refoulement (não repulsão) deve ser observado, pois está vedada a devolução de uma pessoa a país onde a sua vida seja colocada em perigo ou a liberdade ameaçada.
As embarcações das ONGs que operam resgates no Mediterrâneo tentam preencher uma lacuna criada pela própria UE na sequência da cessação de patrulhas de navios no âmbito da Operação Sophia, em março de 2019. Estas Organizações não desembarcam as pessoas resgatadas em portos onde os seus direitos humanos não estejam salvaguardados. Mas quando optam por as trazer para um porto seguro na Europa têm sido acusadas de auxílio à imigração ilegal, sendo os barcos arrestados e os membros da tripulação acusados de crime. Tal é o caso do jovem português Miguel Duarte e restante tripulação do navio Iuventa, suspeitos de alegada colaboração com traficantes. Eles negam veementemente tal colaboração e asseguram que só cumpriram o dever de resgate.
Ora, a intenção de salvar vidas diverge da intenção de uma pessoa conscientemente ajudar uma ou mais pessoas a entrar ilegalmente num território, compreendendo que as suas ações são consideradas ilegais. Neste âmbito, no início do ano surgiram sinais positivos por parte dos tribunais, com acórdãos históricos em Itália e Malta. No início deste mês, o Tribunal Civil de Palermo deu provimento ao recurso interposto pela ONG Mediterranea Saving Humans contra o arresto da sua embarcação de resgate, Mare Jonio. O tribunal ordenou a libertação imediata do navio apreendido desde setembro de 2019, após desembarcar um grupo de pessoas resgatadas do mar. No mês passado, o Tribunal de Recurso de Malta ilibou o Capitão Claus-Peter Reisch de todas as acusações por ter considerado que não havia nenhuma intenção criminosa quando este entrou em águas maltesas sem licença, depois de salvar 234 pessoas no Mediterrâneo. No julgamento de primeira instância, em maio de 2019, tinha sido considerado culpado e condenado a uma multa de € 10.000. Agora, o Tribunal de Recurso concluiu que não há provas de intenção criminosa em relação à navegação nas águas de Malta sem o registo necessário e anulou a decisão anterior.
Porém, salvar pessoas em perigo no mar não esgota a tarefa de salvar. Assegurar condições efetivas de acolhimento e integração, constitui uma outra dimensão de salvar, promovendo a dignidade humana e o desenvolvimento integral das pessoas acolhidas. Neste âmbito, muito ainda há a fazer.
Não obstante, o tema da busca e salvamento no Mediterrâneo permanece controverso e no ano passado o Parlamento Europeu chumbou quatro resoluções sobre este tema. A resolução da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (LIBE), foi chumbada por apenas dois votos.
Há quem prefira fazer vista grossa ao sofrimento e desespero dos migrantes, a pretexto de desencorajar a atuação de redes criminosas, precavendo ainda o designado “efeito chamada” de mais embarcações rumo à Europa. Aparentemente, a solidariedade para com os migrantes pode retirar votos. Mas este tema é demasiado sério para aceitar os resultados das estratégias que têm vindo a ser adotadas com vista a manter os migrantes longe das nossas fronteiras. Ser conivente com um número incontável de mortes por afogamento no mar ou o envio de seres humanos para centros de detenção em países terceiros onde morrem aos poucos é inaceitável e deveria escandalizar-nos a todos. A continuar por este caminho estaremos a negar valores dos quais não queremos nem podemos abdicar sob pena de um retrocesso civilizacional muito perigoso: a desumanização (dos migrantes e dos mais vulneráveis), a indiferença, injustiça e desprezo pela dignidade e valor da vida humana. Há outros caminhos possíveis, na senda das recomendações do Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, comprometidas com os respeito pelos Direitos Humanos, face ao complexo drama humanitário no Mediterrâneo.
O Governo de Portugal tem sido uma voz solidária, e bem, para com as pessoas resgatadas por barcos humanitários no Mediterrâneo. Porém, salvar pessoas em perigo no mar não esgota a tarefa de salvar. Assegurar condições efetivas de acolhimento e integração, constitui uma outra dimensão de salvar, promovendo a dignidade humana e o desenvolvimento integral das pessoas acolhidas. Neste âmbito, muito ainda há a fazer. A caducidade dos documentos na pendência dos processos e dificuldades na renovação atempada dos mesmos causam inúmeros constrangimentos aos migrantes no reconhecimento e concretização dos seus direitos. Após os dezoito meses de apoio inicial do programa de acolhimento, a integração laboral é fundamental para a autonomia plena destas pessoas (i.e. pagamento de despesas com alojamento, alimentação…). A validade dos seus documentos é essencial para que esse objetivo seja alcançado, sendo estes da inteira responsabilidade das autoridades portuguesas. Por outro lado, os prazos legais para decisão dos seus processos de asilo são frequentemente ultrapassados por incapacidade de resposta dos serviços. Esta demora coloca migrantes como o Mohamad numa situação de expetativa e incerteza em relação ao futuro, difíceis de suportar. De salientar ainda que, sem decisão final não é possível o reagrupamento com familiares que continuam no país de origem ou em países inseguros, em situação de perigo. Muitas vezes estes migrantes são prejudicados no seu processo de integração por razões inteiramente alheias à sua vontade. As entidades de acolhimento que acompanham os migrantes têm alertado insistentemente as autoridades para estas e outras situações, mas sem grandes resultados.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.