Há poucos dias celebrou-se mais um Dia Internacional da Mulher, no dia 8 de março. A data é já uma tradição enraizada que enche os nossos telejornais, as redes sociais e nalguns países também as ruas com proclamações solenes, denúncias e exigências. Todos os anos nesta ocorrência são publicados estudos que identificam (e quantificam) as desigualdades entre homens e mulheres no que diz respeito ao salário, ao acesso a cargos de responsabilidade (empresarial e política) e à distribuição dos encargos da vida do dia-a-dia. Sobretudo, recordam-se os números e o drama das mulheres vítimas de diversas formas de violência, desde assédio no local de trabalho a maus tratos domésticos.
Até aqui, uma descrição relativamente objetiva (masculina!) do acontecimento. Agora vem a pergunta, difícil de fazer e talvez de ouvir: para que serve tudo isto? A resposta “machista”, em tom de piada sussurra: um dia para as mulheres, 364 dias para os homens (nós!). Ainda que ninguém pense verdadeiramente desta forma, não deixa de ser uma provocação válida: o barulho e a festa em torno do acontecimento podem esconder um mecanismo de “normalização” de estruturas sociais de injustiça e de opressão, qual ritual de catarse coletiva anual para que tudo fique na mesma. Para não falar do perigo de banalização (“já conhecemos essa história…”) e de aproveitamento comercial (“neste dia, ofereça um presente à mulher da sua vida…”).
Do outro lado da barricada encontramos propostas, mais ou menos sérias, que sugerem uma resolução do problema de modo autoritário: um igualitarismo imposto “verticalmente”. Tais perspetivas, mais ou menos radicais, olham para as desigualdades entre sexos como uma luta, convidando à polarização e ao extremar das posições: nós contra eles, quem não está por nós está contra nós! Além da contradição de pretender resolver uma situação de violência com mais violência, uma abordagem deste género facilmente cai no simplismo de propor soluções automáticas, como se não estivessem em causa questões culturais e antropológicas profundas. Em certa medida, também entram aqui propostas para corrigir a desigualdade por decreto, recorrendo a leis que impõem salários iguais, quotas nos conselhos de administração e no Parlamento, registos rigorosos de deves e haveres nas lides domésticas e familiares (especialmente úteis para “fazer as contas” em caso de divórcio…).
Renuncio a entrar em profundidade no mérito da questão, não me reconhecendo as capacidades (nem seria este o lugar) para uma análise das diversas componentes da questão. Atrevo-me, em vez disso, a fazer uma proposta de “método” inspirada no clássico “ver-julgar-agir” popularizado pela Ação Católica.
VER E OUVIR. É um dever moral, atrevo-me a dizer urgente, reconhecer a injustiça presente à nossa volta, mas também no nosso modo de pensar e de agir, em tantos aspetos e em concreto no que diz respeito à desigualdade entre homens e mulheres. Não passemos à frente demasiado depressa os estudos, os números e os argumentos que nos são apresentados. Tenhamos a coragem de pôr em causa os nossos hábitos e esquemas mentais.
REFLECTIR EM MIM MESMO. Nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio convida a tomar consciência dos ecos que uma determinada situação (em geral, cena evangélica) provoca em quem a contempla. A transformação começa quando o nosso interior se faz “caixa de ressonância” daquilo que nos chega através dos sentidos. Reflectir não é um mero exercício intelectual, desligado da realidade, mas é discernir, identificar, ponderar e reelaborar, a partir dos sentimentos que a abertura ao real me provoca. Onde está a fronteira entre desigualdade e discriminação, por um lado, e diferença e complementaridade, por outro? Existem papéis sociais ou naturais próprios de homens e mulheres? Como é que a cultura alimenta “esquemas” mais ou menos subtis de discriminação (por exemplo favorecendo o olhar sobre o outro como coisa, objeto)? Estas perguntas não têm respostas evidentes e podem ou devem ser, antes de mais, convite para caminhar, para não nos determos.
TRANSFORMAR. Não há mudança social que não comece na conversão do coração… Antes de denunciar (é tão fácil associar-me a uma causa sem sair de casa, com um simples “like”!), sou chamado (ou chamada!) a reconhecer a minha necessidade de mudar, de me abrir, de acolher. Então, sim, agir! A desigualdade e a discriminação, o abuso e a violência não são fatalidades, e corrigir ou evitar depende de cada um, inspirados pelo Deus que “toma partido pelos oprimidos, que os socorre e liberta” (Salmo 72).
Em Itália, o dia 8 de março é popularmente designado como “Festa das Mulheres”, convidando a associar à denúncia e à reivindicação o aspecto da celebração. Aproveitemos então o convite do calendário para festejar a Mulher e as mulheres das nossas vidas, reconhecendo nelas o dom da Graça, a beleza da obra do Criador que nos “criou à sua imagem e semelhança, homem e mulher” (Génesis 1,27). Longe de impedir o reconhecimento da injustiça e do sofrimento que padecem tantas mulheres, dos quais também somos responsáveis individual ou solidariamente, a celebração conduz-nos a pôr mãos à obra para nos mudar a nós mesmo e ao mundo, podendo cada um de nós dizer “eu também” sou vítima, “eu também” sou responsável, “eu também” quero transformar!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.