Durante o mês de outubro, foi dado um considerável, e merecido, destaque internacional ao povo Yazidi. Na sexta-feira, dia 5, foi atribuído a Nadia Murat (juntamente com Denis Mukwege) o Nobel da Paz, de entre 331 candidatos – 216 pessoas e 115 organizações, pelos seus esforços em acabar com o uso de violência sexual como arma de guerra.
No Iraque, de 7 a 14 de outubro, os yazidi puderam celebrar, pela primeira vez em 4 anos, o Festival da Assembleia no mais importante santuário de Lalesh. O motivo que impedia a celebração remonta a agosto de 2014 com o autonomeado Estado Islâmico.
Finalmente, no passado dia 21, os yazidi Layla Taalo e Idris Bashar Silo Taha receberam o prémio Mother Teresa for Social Justice, um prémio concedido desde 2005 pela Fundação Harmony, uma instituição criada na Índia para promover a coexistência pacífica e solidária entre as diferentes religiões e sociedades.
Durante quase dois anos, tive a honra de poder conviver diariamente com yazidi, de trabalhar com eles e partilhar a vida e o dia a dia, de ouvir os inúmeros relatos das brutalidades de que foram alvo e de estabelecer relações de amizade que mantenho e que acredito serem mais fortes que a ausência e a distância.
Os yazidi constituem uma comunidade étnico-religiosa curda e praticam uma antiga religião sincrética, o yazidismo, ligada a antigas religiões da Mesopotâmia. A maior parte do povo Yazidi reside na província de Nínive, no norte do Iraque, cuja capital é Mosul. Acreditam em Deus como criador do mundo que colocou sob o cuidado de sete “seres sagrados”, ou anjos, cujo “chefe” (arcanjo) é Melek Taus, o Anjo Pavão. Como governante do mundo, este Anjo Pavão é a causa de tudo o que sucede de bom e de mau aos seres humanos.
Nas últimas décadas do século XX, os yazidi, como o resto dos curdos, foram perseguidos e deslocados das suas terras pelo regime de Saddam Hussein. Após o início da Guerra do Iraque, a comunidade yazidi sofreu vários ataques por parte de fundamentalistas sunitas.
Nas últimas décadas do século XX, os yazidi, como o resto dos curdos, foram perseguidos e deslocados das suas terras pelo regime de Saddam Hussein. Após o início da Guerra do Iraque, a comunidade yazidi sofreu vários ataques por parte de fundamentalistas sunitas.
A partir de 3 de agosto de 2014, os ataques do DAESH a este povo constituem um genocídio ao abrigo da Convenção de 1948 para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (“Convenção do Genocídio”), reconhecida pelo UNHRC, pelo Conselho da Europa e pelo Parlamento Europeu. A natureza sistemática das atrocidades cometidas demonstra que o DAESH agiu com a intenção de destruir a comunidade étnico-religiosa Yazidi.
Atuando de forma claramente articulada – ainda que com um argumento imoral e totalmente errado -, os combatentes do DAESH “justificaram” a sua campanha de atrocidades sistemáticas como um dever para os muçulmanos. Assim, cometeram atos hediondos como: assassinatos de idosos e de pessoas com problemas de desenvolvimento e deficiências; lavagem cerebral de crianças-rapazes treinadas como jihadistas (em alguns casos, enviadas como homens-bomba para atacar a sua própria comunidade Yazidi); matanças de pessoas com problemas de desenvolvimento ou portadoras de deficiência; execuções sumárias (com tiros ou degolados) de rapazes mais velhos e homens que se recusaram a converter-se ao Islão e os seus corpos deixados a céu aberto ou despejados em valas comuns; redução à escravidão e violação de mulheres e raparigas.
O pequeno povo Yazidi foi alvo de tudo! Numa declaração que o próprio DAESH publicou com as razões que justificavam o genocídio, é alegado que os muçulmanos seriam questionados por Deus no Dia do Juízo como é tinham deixado os yazidi continuar a existir apesar do domínio islâmico.
O pequeno povo Yazidi foi alvo de tudo! Numa declaração que o próprio DAESH publicou com as razões que justificavam o genocídio, é alegado que os muçulmanos seriam questionados por Deus no Dia do Juízo como é tinham deixado os yazidi continuar a existir apesar do domínio islâmico.
Enquanto os números exatos ainda estão por verificar, estima-se que aproximadamente 3.100 yazidi tenham sido mortos, seja por execução ou devido à desidratação e fome que padeceram durante a ocupação de Sinjar. Pelo menos 6.800 mulheres e crianças foram sequestradas. Quase 3.000 mulheres permanecem em cativeiro, provavelmente em territórios ainda ocupados pelo DAESH na Síria. Mas, são muitos os que conheço com nome e apelido!
Abu Salem (pai de Salem), nos seus quarenta, tinha uma banca de legumes à frente do campo de deslocados em Sharia, no Curdistão iraquiano, onde eu costumava comprar e ficar uns minutos à conversa. Não recebeu nenhum prémio, mas anda com uma folha de papel no bolso da camisa, quase desfeita de tanto dobrar e abrir, onde estão escritos os 37 nomes de familiares próximos que ficaram retidos pelo DAESH e que ele não conhece o destino. A sua irmã que vive na Alemanha, implora que vá ter com ela, “Mas como é que eu posso ir? Quem é que fica aqui para saber da sua sorte? O que é que lhes aconteceu? Estão vivos ou devo ficar para os enterrar?” – questiona-me, olhando-me nos olhos e voltando a guardar de novo a lista esfarrapada junto ao coração.
Pelo menos 6.800 mulheres e crianças foram sequestradas. Quase 3.000 mulheres permanecem em cativeiro, provavelmente em territórios ainda ocupados pelo DAESH na Síria. Mas, são muitos os que conheço com nome e apelido!
Jamal, o rapaz de 18 anos, muito moreno e com olhos tão escuros como azeitonas, que entrevistei para um posto de trabalho, tinha fugido de Sinjar com a sua mãe e irmã. Para trás ficaram o seu irmão mais velho, assassinado à sua frente, e as suas outras três irmãs, raptadas pelo DAESH para uso e abuso a seu belo prazer. Jamal, como tantos outros rapazes novos, é chamado a refazer uma vida que lhe custa viver.
Uma menina de 10 anos, depois de resgatada ao DAESH – as famílias ficam muito endividadas para poder pagar o resgate de entes queridos -, veio viver com a irmã mais velha que frequentava um atelier de costura que o JRS (Serviço Jesuíta aos Refugiados) organizava. Tinha deixado de falar e não olhava diretamente para ninguém. Sempre que alguém passava junto dela, baixava a cabeça, como se esse gesto fosse capaz de a tornar invisível. Esteve sequestrada pelo DAESH durante dois anos e meio. Podemos imaginar sujeita a quê e não estaríamos errados. Apercebi-me que adorava desenhar. Um dia, aproximei-me dela enquanto pintava e pus-lhe a máquina fotográfica ao pé. Gesticulei, como podia, a intenção de que ela mesma tirasse fotografias… não lhe tocou… não me olhou… continuou cabisbaixa centrada no desenho que estava a pintar. Não sei porquê, tirei uma fotografia às suas mãos enquanto desenhavam e mostrei-lhe. O coração mirrou-se-me ao ver aparecer um leve sorriso nos lábios que tinham há muito deixado de pertencer ao rosto duma criança.
Telefonei para lhes dizer como estava contente e orgulhosa pela atenção que finalmente estavam a receber. Contentes e orgulhosos só perguntaram quando é que nos voltaríamos a ver.
Não sei por que motivo me lembrei destes três. De muitos outros fiquei amiga. Liguei-me a este povo com uma indelével identidade pela forma como me acolheram e deixaram partilhar as suas vidas. Todos eles merecedores destes prémios que os pôs, por algum tempo, no centro do mundo.
Telefonei para lhes dizer como estava contente e orgulhosa pela atenção que finalmente estavam a receber. Contentes e orgulhosos só perguntaram quando é que nos voltaríamos a ver.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.