1. Tive o privilégio de participar recentemente em Marselha na terceira edição dos Encontros do Mediterrâneo (Rencontres Méditerranéennes), que decorreram de 17 a 24 de setembro sob o lema “Mosaico de Esperança”. Esta série de encontros destinados a refletir sobre os desafios atuais que os povos da bacia do Mediterrâneo enfrentam teve uma primeira edição, de cariz marcadamente ecuménico, em Bari (23/02/2020), em que a tónica foi colocada na partilha e oração entre Bispos pertencentes às diferentes confissões cristãs que floresceram nas margens do Mediterrâneo. A segunda edição, que decorreu em Florença (23-27/02/2022), sublinhou o compromisso político local para enfrentar os desafios que se colocam, pelo que um número apreciável dos participantes era constituído por autarcas de cidades banhadas pelo Mediterrâneo.
A terceira edição, realizada há poucos dias, pretendeu ser um exercício de escuta sinodal entre bispos católicos e jovens de diferentes países, culturas e religiões da área do Mediterrâneo, quiçá motivada pela realização em 2023 da Jornada Mundial da Juventude. O encontro foi encerrado pelo Papa Francisco no dia 23 de setembro, com um discurso de grande alcance a que me referirei muito brevemente nesta nota. E culminou na celebração do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado na catedral de Marselha, sob a presidência do Prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, cardeal Michael Czerny S.J., e com a participação ativa de muitas comunidades nacionais presentes naquela arquidiocese.
2. O discurso do Papa centrou-se em três símbolos que caracterizam a cidade de Marselha, urbe de carácter multiétnico e cosmopolita desde há séculos: o mar, o porto e o farol. Francisco recorda como o Mediterrâneo, apelidado de mare nostrum, foi sempre um espaço de encontro: “entre as religiões abraâmicas, entre o pensamento grego, latino e árabe, entre a ciência, a filosofia e o direito…”. Esta vocação histórica apela a contrapor a todos os conflitos que se sucederam ao longo dos séculos e até aos dias de hoje a “convivência das diferenças” (palavras do “Bispo dos pobres” Tonino Bello). O Papa faz um apelo veemente a um “pensamento comunitário” em tempo de nova corrida aos armamentos e de discursos do ódio: “Quanto necessitamos dele no momento atual, quando nacionalismos antiquados e belicosos querem fazer cair o sonho da comunidade das nações! Mas lembremo-nos de que, com as armas, se faz a guerra, não a paz; e com a ganância de poder volta-se sempre ao passado, não se constrói o futuro”.
O Papa faz um apelo veemente a um “pensamento comunitário” em tempo de nova corrida aos armamentos e de discursos do ódio: “Quanto necessitamos dele no momento atual, quando nacionalismos antiquados e belicosos querem fazer cair o sonho da comunidade das nações! Mas lembremo-nos de que, com as armas, se faz a guerra, não a paz; e com a ganância de poder volta-se sempre ao passado, não se constrói o futuro”.
O Papa enumera depois as inúmeras pobrezas contemporâneas que urge escutar e às quais a Igreja e a comunidade civil têm de responder em conjunto: “pobreza material, educativa, laboral, cultural, religiosa”. Mas também a precaridade, que é fonte de criminalidade, da prostituição, do trabalho escravo, do medo que tolhe e impede de olhar o futuro com esperança. E ainda o abandono dos idosos empurrados para a falsa solução da eutanásia, “os bebés não nascidos”, a solidão que se procura consolar numa multidão de animais de companhia… Este diagnóstico sombrio não poderia deixar de incluir “os gritos de dor que se levantam do Norte de África e do Médio Oriente”: as várias situações de violência e injustiça prevalentes na região, as perseguições de que são vítimas os cristãos em diversos países, o clamor dos migrantes. Palavras fortes, diz o Papa a propósito deste último grito: “há um grito de dor que ressoa mais do que qualquer outro e está a transformar o mare nostrum em mare mortuum, a mudar o Mediterrâneo de berço da civilização em túmulo da dignidade”. As estatísticas aí estão para nos dizer que o número de mortos no mar registados em 2023 já superou o do ano anterior. Estatísticas, reportagens, fotos, vídeos e alertas que parecem já pouco nos comover.
O Papa enumera depois as inúmeras pobrezas contemporâneas que urge escutar e a que a Igreja e a comunidade civil têm de responder em conjunto: “pobreza material, educativa, laboral, cultural, religiosa”. Mas também a precaridade, que é fonte de criminalidade, da prostituição, do trabalho escravo, do medo que tolhe e impede de olhar o futuro com esperança. E ainda o abandono dos idosos empurrados para a falsa solução da eutanásia, “os bebés não nascidos”, a solidão que se procura consolar numa multidão de animais de companhia… Este diagnóstico sombrio não poderia deixar de incluir “os gritos de dor que se levantam do Norte de África e do Médio Oriente”
3. Depois do mar, o Santo Padre refletiu sobre o símbolo do porto: “Marselha tem um grande porto e é uma grande porta [aberta para o mar, para a França e para a Europa], que não pode ser fechada”. Porém, protesta Francisco, para os migrantes “fecharam-se vários portos do Mediterrâneo” diante das vozes de muitos, incluindo responsáveis políticos, que agitam os temores da “invasão” e da “emergência”. “Quem arrisca a vida no mar não invade, procura acolhimento, procura vida”, afirma resoluto o Papa. E volta à imagem do mar: “O mare nostrum clama por justiça, com as suas margens que dum lado transudam opulência, consumismo e desperdício, enquanto do outro há pobreza e precariedade”.
Francisco profere a seguir palavras firmes para recordar que a Igreja há muito tempo que fala desta situação, citando em particular afirmações dos seus antecessores Paulo VI e Pio XII. Francisco recorda como Paulo VI enumerou os deveres de solidariedade, de justiça social, de caridade universal e do acolhimento. Francisco não ilude as dificuldades em acolher, mas recorda o que significa ser cristão diante dos dramas que levam os migrantes a bater às portas da Europa: “o critério principal não pode ser a manutenção do próprio bem-estar, mas a salvaguarda da dignidade humana”. A indiferença diante do sofrimento de tantos migrantes e refugiados está a conduzir-nos a um “naufrágio de civilização”, alerta o Papa. O caminho a percorrer é outro: “Contra a terrível chaga da exploração de seres humanos, a solução não é rejeitar, mas assegurar, segundo as possibilidades de cada qual, um largo número de entradas legais e regulares, sustentáveis graças a um acolhimento équo por parte do continente europeu, no contexto duma colaboração com os países de origem”. Não foi também isso que aconteceu, pergunto, durante os séculos XIX e XX, quando diversas regiões da Europa estavam mergulhadas na miséria e vaga após vaga de europeus migraram rumo às Américas e a África? E Francisco dirige-se aos bispos presentes com palavras inconfundíveis: “Que a Igreja não seja um conjunto de preceitos; a Igreja seja porto de esperança para os desanimados. Por favor, ampliai o coração! A Igreja seja porto de restabelecimento, onde as pessoas se sintam encorajadas a fazerem-se ao largo na vida com a força incomparável da alegria de Cristo”.
“Que a Igreja não seja um conjunto de preceitos; a Igreja seja porto de esperança para os desanimados. Por favor, ampliai o coração! A Igreja seja porto de restabelecimento, onde as pessoas se sintam encorajadas a fazerem-se ao largo na vida com a força incomparável da alegria de Cristo”.
4. A última imagem é a do farol, que “ilumina o mar e indica o porto”. Francisco sugere alguns rastos de luz que “podem orientar a rota das Igrejas no Mediterrâneo”. Um deles poderá ser avaliar a pertinência da constituição de uma Conferência Eclesial do Mediterrâneo, “que permita novas possibilidades de intercâmbio e dê maior representatividade eclesial à região”. Em resposta à urgente questão migratória, o Papa aponta para uma “pastoral específica ainda mais conectada, de modo que as dioceses mais expostas pudessem assegurar melhor assistência espiritual e humana às irmãs e aos irmãos que chegam necessitados de tudo”.
5. “O que resultou do evento de Marselha?”, perguntou-se o Papa uns dias depois. Na sua resposta, Francisco sublinha o tema da esperança que constituiu o lema do Encontro:
“Resultou um olhar sobre o Mediterrâneo, que definiria simplesmente humano, não ideológico, não estratégico, não politicamente correto nem instrumental, humano, isto é, capaz de remeter tudo para o valor primordial da pessoa humana e da sua dignidade inviolável. Depois, ao mesmo tempo, resultou um olhar de esperança. Hoje isto é deveras surpreendente: quando escutamos testemunhas que passaram por situações desumanas ou que as compartilharam, e precisamente delas recebemos uma «profissão de esperança». E é também um olhar de fraternidade. Irmãos e irmãs, esta esperança, esta fraternidade, não deve «evaporar-se», não, pelo contrário, deve organizar-se, concretizar-se em ações a longo, médio e curto prazo. Para que as pessoas, em plena dignidade, possam optar por emigrar ou não emigrar”.
Um olhar humano, um olhar de esperança, um olhar de fraternidade. Este é o caminho a percorrer para que o Mediterrâneo possa voltar a ser “aquilo que sempre foi chamado a ser: um mosaico de civilização e de esperança!”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.