No artigo de abril passado, argumentei que se devia conter a pandemia e combater a recessão a todo o custo; sem recear soluções extraordinárias para pagar a fatura; convocando toda a solidariedade internacional e nacional; e contendo ímpetos planificadores, domésticos ou europeus.
Passados dois meses, estamos em desconfinamento e tudo indica que ultrapassaremos a pandemia com menos sacrifício de vidas do que alguns dos nossos vizinhos europeus. Contudo, o sacrifício económico está ainda a aumentar e será provavelmente prolongado. A sociedade civil respondeu de forma notável. As respostas políticas – nacionais e europeias – têm sido lentas, tímidas e pouco eficientes.
Ao nível nacional, foram grandes as hesitações e os atrasos na implementação dos apoios aos que perderam emprego ou rendimentos, e bem assim às empresas que recorreram a mecanismos como o lay-off e moratórias nos empréstimos. E persistem lacunas. Estes atrasos, hesitações e lacunas tornam-se ainda mais difíceis de aceitar quando no discurso político se começa a falar do apoio a grandes empresas que já antes da pandemia não eram rentáveis e absorviam enormes recursos dos contribuintes.
Neste momento, as previsões oficiais apontam para uma queda do produto interno bruto (PIB) em 2020 de cerca de 8% – o que corresponde a uma perda de mais de 16 mil milhões de euros de rendimentos.
Prevê-se que o défice do estado chegue a mais de 7% do PIB e que a dívida pública aumente de 117,7% para 135% do PIB – deterioração das contas públicas perfeitamente aceitável na medida em que resulta da resposta ao desemprego e à perda de rendimentos das pessoas e das empresas que operavam saudavelmente antes da crise.
Há dois meses argumentei que esta dívida da pandemia deveria ser mutualizada – se não pudesse ser monetarizada – sob a forma de obrigações de muito longo prazo e juro baixo. Infelizmente, a União Europeia não foi politicamente capaz de avançar neste sentido.
A resposta mais imediata veio do banco central europeu, que reforçou o seu programa de compra de títulos com um programa de compras de emergência pandémica visando conter as taxas de juro das dívidas dos países mais frágeis. Contudo, este programa é temporário – as taxas de juro exigidas pelos mercados podem aumentar quando for interrompido; e não resolve o problema de fundo – o da solidariedade política entre os estados e países europeus; é sobre este problema que incide no essencial este artigo.
O fundo espelha as dificuldades típicas da União Europeia – é lento, pouco focado, demasiado ambicioso, complexo e burocratizante. Mas tem algumas surpresas boas.
Ao nível supranacional, a resposta política da União Europeia foi hesitante e atrasada, e ainda é incerta; e, sendo burocratizante, parece-me de eficácia muito duvidosa.
Em meados de maio, o eixo franco-alemão – politicamente ainda mais crucial neste momento em que faltam verdadeiros líderes nos restantes países – tomou a iniciativa e apresentou uma proposta de plano e fundo de recuperação para a economia da União Europeia, ultrapassando os impasses e desacordos do Conselho e Eurogrupo até então. Habilmente, Emmanuel Macron e Angela Merkel embutiram a proposta para recuperação da economia europeia no quadro financeiro plurianual (QFP 2021-27) – o orçamento da União para os próximos 7 anos, que estava bloqueado há 1 ano – na prática quase duplicando o Quadro.
No final de maio, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de QFP 2021-27 compatível com a do eixo franco-alemão. Contudo, a proposta da Comissão tem de ser aprovada pelo Conselho Europeu e por Parlamentos nacionais, e antes de julho não estará viabilizada. É, portanto, ainda incerta.
Parece-me útil comentar o timing, o financiamento, o foco e a implementação deste fundo de recuperação. Avanço desde já que na minha opinião o fundo espelha as dificuldades típicas da União Europeia – é lento, pouco focado, demasiado ambicioso, complexo e burocratizante. Mas tem algumas surpresas boas.
Quanto ao timing. A título de fundo de recuperação, Portugal beneficiará de até cerca de 15,5 mil milhões de euros de subvenções e de até cerca de 10,8 mil milhões de euros de empréstimos, que no conjunto representam cerca de 12,4% do PIB de 2019. Ou seja, cerca de 1,8% do PIB por ano, de 2021 até 2027.
Contudo, estes fundos apenas chegarão à economia a partir de 2021, e serão gradualmente injetados ao longo dos 7 anos até 2027. Ou seja, na melhor das hipóteses (e, dada a burocracia típica destes planos, penso que a realidade ficará aquém disso no primeiro ano) Portugal beneficiará de fundos de recuperação de cerca de 1,8% do PIB (de 2019) em 2021, e nada em 2020.
Esta verba deve ser comparada com a quebra prevista para o PIB em 2020: cerca de 8%. Isto não me parece um fundo de recuperação; na segunda metade de 2020 desaparecerão uma quantidade enorme de empresas e postos de trabalho; haverá milhares de pessoas em lay-off com poder de compra reduzido; milhares de precários sem rendimentos; milhares de pessoas a perder o emprego.
A ajuda à economia em 2020 está inteiramente dependente do estado português. A questão é se a dívida daí resultante será financiável em condições razoáveis ou se não viremos a ser forçados a mais austeridade dentro de um ou dois anos para reequilibrar as contas públicas. Um fundo de recuperação composto por transferências automáticas de emergência para os estados mais fragilizados, mutualizado pela União, teria sido o desejável; infelizmente isso não foi politicamente possível – a solidariedade europeia ainda é mais projeto do que realidade.
Quanto ao financiamento, há uma boa notícia. Uma parte do fundo de recuperação será mutualizado, no sentido em que a proposta da Comissão prevê a emissão de dívida europeia para o financiar, por prazos até 30 anos e com carência de capital até 2027. O reembolso desta dívida será pago, é certo, com impostos futuros dos contribuintes europeus, mas de forma suave e solidária como até agora nunca se viu. A parte menos boa da notícia é que ainda assim se criará novos impostos para financiar uma parte do acréscimo do orçamento da União.
Quanto ao foco e implementação do fundo de recuperação, as informações disponíveis apontam para um emaranhado de programas dirigidos a aspetos específicos da economia e da sociedade. Apontam, ainda, para um sistema em que cada estado-membro deve apresentar um plano de recuperação e depois gerir a alocação dos fundos a projetos concretos de acordo com o plano aprovado.
Infelizmente, já sabemos que estes planos e fundos alimentam a burocracia, uma tecno-estrutura especializada em ‘candidaturas de projetos’, e o poder de políticos que distribuem fundos pelas suas teias de interesses.
Em primeiro lugar, isto é mais um plano de crescimento económico a 7 anos do que um fundo de recuperação da pandemia. É verdade que a Europa precisa de acelerar o crescimento, e de se reestruturar para substituir cadeias de produção e distribuição muito dependentes de zonas do globo das quais queremos depender menos no futuro; é verdade que a Europa precisa de criar oportunidades de emprego e melhor nível de vida para as novas gerações, hoje tão sacrificadas. No caso de Portugal – um dos países que menos tem crescido nos últimos 20 anos – isto é ainda mais verdade. Mas para recuperar da pandemia precisar-se-ia de injeção de fundos que rápida e eficazmente sustentassem rendimentos e empresas.
Em segundo lugar, é um plano que requer planos, um fundo que requer candidaturas a fundos,… enfim: a Europa no seu mais típico viés para a planificação e a burocracia. Pensava que a história já nos tinha ensinado que não é com planos centralizados que se consegue estimular o crescimento económico.
Infelizmente, já sabemos que estes planos e fundos alimentam a burocracia, uma tecno-estrutura especializada em ‘candidaturas de projetos’, e o poder de políticos que distribuem fundos pelas suas teias de interesses. No final, o que chega à economia produtiva – tarde e muitas vezes mal direcionado – é uma fração dos fundos inicialmente disponíveis.
Tudo isto é provavelmente mais grave quando há, como agora, subsídios a fundo perdido. Lembro-me bem, na década de 80 do século passado, do desperdício de fundos do fundo social europeu, do PEDIP (programa específico de desenvolvimento da indústria portuguesa), etc… Não será já possível organizar cursos de formação profissional em que promotores, formadores e formandos ganhem sem que nada aconteça; não será já possível comprar equipamentos a amigos que nunca se chegue a desempacotar. Mas parece-me possível e provável que muitos fundos perdidos sejam mesmo perdidos – nunca cheguem a estimular atividades que verdadeiramente interessem, e venham até a ter destino incerto.
Entre nós, chegou-se ao cúmulo do Primeiro-Ministro nomear um “para-ministro” para formular o plano de recuperação português. Um plano saído de uma cabeça única, próxima dos políticos no poder, traçará a estratégia para o crescimento da economia portuguesa no próximo decénio. Como se não houvesse questões de legitimidade política; como se não houvesse conflitos de interesse; como se não houvesse quem mais sabe sobre a economia portuguesa; como se não houvesse instituições legítimas para coordenar tais estudos.
Concordo que se pode aumentar a eficiência na alocação de recursos a médio-longo prazo mediante uma reflexão alargada e compromissos estratégicos assumidos pelas várias instâncias da sociedade; não vejo que se possa aumentar o crescimento económico em resultado de planos e decretos emanados do topo político; em especial quando enfatizam – como já disse o novo “planeador” – o papel do estado na economia.
Fotografia de: Mauro Sbicego – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.