“Estou pronto!” – É a resposta de Mohamad, a mais um convite para partilhar a sua história de vida num seminário de sensibilização para o drama dos refugiados. Tem o powerpoint preparado, com fotografias de uma infância e juventude felizes na Síria, junto da família e amigos e no local de trabalho. Foi ele próprio que preparou a apresentação e escreveu as legendas em português, essa língua nova e estranha que aprendeu a arranhar, em pouco mais de um ano. E cada vez que as fotos ganham vida, coloridas pelo sotaque das suas palavras, perante uma plateia curiosa, ele revive a sua vida. Relembra momentos felizes e sonhos realizados, recorda as feridas da guerra, a dor da separação da família, as incertezas e os desafios da integração no estrangeiro, com o seu filho menor de idade, numa narrativa onde a esperança triunfa. Mohamad partilha a sua história com grande generosidade e sentido de missão. É preciso que as pessoas conheçam, compreendam e se envolvam. Sabe que lhe é dada a palavra e esta é uma oportunidade rara. Mas, contar uma e outra vez um percurso tão difícil, não é fácil. Faz sangrar feridas, ainda abertas.
Radwan, um jovem sírio que conheci em Amesterdão, perdeu toda a sua família e soube notícias daqueles que ficaram para trás e não sobreviveram, já no Reino Unido. Reviver estes acontecimentos é demasiado doloroso. Numa conferência com representantes de vários países europeus olhou para a plateia e começou por dizer: “Desculpem… Mas esta é mesmo a última vez que conto a minha história”. E perante o nosso silêncio (e atrevo-me a dizer, embaraço e vergonha, por tudo quanto sofreu, em particular na Europa, onde foi mal-recebido, perseguido e injustamente preso), Radwan contou de novo e pela derradeira vez a sua história. E ela passou, de algum modo, a ser nossa.
Quando a história do outro passa a ser a nossa história, quando conhecemos e testemunhamos terríveis acontecimentos, direta ou indiretamente, como podemos ficar indiferentes?
O Mohamad e o Radwan são duas pessoas de entre 65,6 milhões de deslocados internos e refugiados no mundo (dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR), sendo que mais de metade dos refugiados são menores de idade. Quem advoga por eles? Quem defende 766 milhões de pessoas em situação de pobreza (dados do Banco Mundial), perto de 119 milhões de pobres em situação de exclusão social na Europa, 23.7% da população europeia e 26.6% da população portuguesa (dados do Eurostat)? Quem advoga por 21 milhões de vítimas de tráfico humano no mundo (dados do Parlamento Europeu)? Quem entre tantos se levanta pelo Lázaro da parábola (Lc 16,19-31)? Os números são esmagadores e devem indignar-nos. Sabemos que existem milhões de pessoas vulneráveis, marginalizadas e esquecidas no mundo, um vasto número a viver nas nossas cidades, bem perto das nossas casas (nacionais e estrangeiros). A realidade não está distante e tem rostos e nomes concretos, mas podemos correr o risco de a ver com um certo distanciamento.
Muitas vezes é difícil sair da nossa zona de conforto e nos erguermos em defesa dos mais vulneráveis, dos mais pobres e marginalizados, ser a sua voz num mundo onde tantas vezes são tratados com uma indiferença mortal. Estaremos prontos a ficar ao seu lado, a levar a sua cruz, correndo o risco de ser criticados e perseguidos? O sofrimento, a frustração e a infâmia são muitas vezes o resultado de seguir Jesus pobre e humilde. Mas, na sociedade laica em que vivemos, a pressão de modas e trends (muitas delas alimentadas pelos media e redes sociais) e um certo relativismo instalado, não devem intimidar-nos. Todo o cristão tem o direito e o dever de afirmar a sua identidade e os seus valores. “Estar pronto” a denunciar a injustiça.
Vemos como é permeável a agenda mediática, como os temas entram e saem dos alinhamentos dos noticiários, terríveis imagens de guerra em Ghouta seguidas dos últimos resultados da bola. Podemos chocar-nos com as notícias e imagens de bombardeamentos, emocionar-nos com o sofrimento e a morte de civis inocentes, procurar até ajudar de alguma forma através de um gesto solidário, uma recolha de fundos, envio de bens… (num local onde até a ajuda humanitária da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho têm dificuldade em entrar!) e depois?… Sem desvalorizar a bondade deste gesto pontual, o que acontece quando o tema sai da agenda e se afasta do nosso olhar? Neste tempo de Quaresma, importa reconhecer a nossa própria cumplicidade com a injustiça e a nossa necessidade constante de conversão.
Mais ativismo é preciso, por favor! Um ativismo construtivo, reconciliador, inspirado pelo amor de Deus e pelo amor aos outros, que procura construir a justiça do Reino de Deus no mundo. Um ativismo que respeite as experiências e as perspectivas das pessoas e grupos mais diretamente afetados pela injustiça; que defenda os mais pobres e os mais marginalizados; que tente fazê-los participar e fazer ouvir as suas vozes; que analise leis, políticas e instituições e o seu impacto sobre os mais vulneráveis; que dialogue criticamente e construtivamente com decisores políticos, com vista à promoção de relações mais justas e inclusivas, a nível nacional, regional e global.
Este é um apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade. Afirmar, “estou pronto!” E sendo cristão, pronto a seguir Jesus, a amar o próximo como a si mesmo, em particular os mais vulneráveis, os mais pobres e marginalizados. Conhecer a Doutrina Social da Igreja, saborear e discernir, estar orientado para a ação. Podemos bater à porta de instituições e entidades com a missão de servir os mais pobres ou ir diretamente ao encontro dos mesmos. Por vezes, quem se vê numa situação de exclusão, percebe que alguns apoios vêm e vão na maré das políticas e projetos sociais limitados no tempo. Quando vamos ao encontro dos mais vulneráveis, oferecemos a nossa amizade e caminhamos juntos, lado a lado, numa relação de reciprocidade. Perante os muitos obstáculos, somos resilientes. Não se abandona um/a verdadeiro/a amigo/a. Então, partindo desta experiência transformadora, poderemos ser a sua voz no mundo, ajudando a construir pontes e a desfazer muros.
Não tenhamos ilusões, este é um caminho terrivelmente exigente e sabemos que a cruz está presente. Recentemente lemos notícias, veiculadas também pelo Ponto SJ, que nos Estados Unidos da América freiras, padres e leigos foram presos em defesa de imigrantes, também conhecidos como dreamers. Mas esta cruz é alegria, trazendo uma saciedade que as palavras de Jesus nos deixam antever: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados”.
(Os nomes das pessoas mencionadas neste artigo foram alterados).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.