Na sociedade Ocidental crescentemente globalizada em que vivemos, é frequente ouvir-se que cada um de nós é “uma marca”. Esta máxima é reforçada pelas empresas, principalmente por aquelas que lucram diretamente com a monetização dos dados que submetemos ao fazermos o nosso próprio branding, pelos nossos pares, quando validam a nossa atividade com likes por interagem connosco primariamente nas redes sociais. É também reforçada pela máquina do Estado quem cada vez mais exige a digitalização de todos os aspetos da nossa vida. Cria-se uma ilusão: parece que fora do abismo da caixa preta do telemóvel, na verdade, não somos nada.
Este fenómeno não é novo, mas há que concordar que se tem intensificado nos últimos anos. Foi agudizado pelas restrições da pandemia, em que a comunidade digital passou a ser o fraco substituto de uma verdadeira presença. Ciclicamente irrito-me, dou o meu grito do Ipiranga millennial desesperado: saio das redes, apago as apps, limito o acesso à internet, e vejo as notificações a desaparecer. Faço-o num exercício pleno da minha liberdade. Estou há dois meses fora do circuito normal das redes sociais. Não é a primeira vez que o faço, e certamente não será a última, mas esta foi a vez em que a minha ausência foi mais criticada. Apesar de ter assegurado os meus amigos que estaria sempre à distância de um telefonema ou e-mail, (afinal não é como se me tivesse tornado ermita!), tive vários que curiosamente protestaram o mesmo, dizendo que escrever e-mails hoje em dia é tão oneroso como redigir uma carta.
Cria-se uma ilusão: parece que fora do abismo da caixa preta do telemóvel, na verdade, não somos nada.
Se é certo que não posso — nem quero — exigir tratamento especial face às outras pessoas, pergunto-me: será que chegámos ao ponto em que não há vagar para trocar e-mails, nem pensar em enviar um SMS normal, não-facilitado por uma aplicação de mensagens instantâneas? E porque é que chegámos a este ponto? O motor tem um bulício familiar, soa-me a consumismo desenfreado e requisitos de produtividade sobre-humanas. Queremos mais, e mais, e mais… mais comunicação, mais trocas, mais rápido, com mais pessoas. E qual é o preço disto? O ruído. O cansaço. A banalidade. A superficialidade. Nem sei quantas conversas tenho, nem com quantas pessoas falo; as trocas são tantas que perderam sentido, nexo, valor.
A internet é maravilhosa. Mas o facto de estarmos permanente e imediatamente ao dispor dos outros, à mercê das falsas urgências de empregadores, familiares e amigos, tem em si uma violência que atenta contra a dignidade da pessoa humana, tanto das pessoas violentadas como a dos agressores. O pior é saber que poucos são aqueles que se podem dar ao luxo de sair desta máquina capitalista voraz: por um lado, cada vez mais os negócios dos profissionais liberais e prestadores de serviços em freelance dependem da sua presença digital; por outro, num mercado de trabalho de conjuntura pandémica, temos de estar permanentemente abertos a solicitações de patrões e clientes, caso contrário aparecerá alguém mais disponível, pronto ocupar o nosso lugar. Esta dualidade dói e fere. Simultaneamente é-nos vendida a farsa da individualidade e originalidade máximas (que devemos nutrir, alimentar, monetizar), enquanto internalizamos que somos absolutamente dispensáveis, na medida em que outra pessoa com competências semelhantes está à distância de um clique para nos substituir.
Esta experiência fez-me pensar também sobre as pessoas que não têm presença digital: nomeadamente as pessoas institucionalizadas.
Os protestos iniciais contra a minha saída da internet extinguiram-se, sendo rapidamente substituídos pelo silêncio. Desapareci virtualmente. Esta experiência fez-me pensar também sobre as pessoas que não têm presença digital: nomeadamente as pessoas institucionalizadas. Os presos, os doentes, principalmente aqueles que estão muito doentes e sozinhos, as pessoas portadoras de deficiência profunda e que vivem em instituições, os idosos em lares, as crianças órfãs institucionalizadas. Reflito que, no coletivo, quanto mais espaço fazemos para ocupar com as nossas marcas pessoais, a curar cuidadosamente a nossa imagem o peso do nosso nome, menos espaço guardamos para estes.
Na surdina das redes, da internet, da permanente venda, do consumo, onde estão os nossos velhos, para lá de um post de um “neto de fim de semana” que exibe a sua compaixão para quem quiser ver, ao fazer a visita perfunctória? Onde estão as crianças institucionalizadas, fora do voluntariado-chiclete? Os deficientes que moram há décadas numa instituição, que até têm família cá fora, mas que deles não podem (nem querem) cuidar? Onde estão os doentes crónicos que não têm ninguém? Onde ficam e como estão os presos?
Ao contrário dos outros critérios de alteridade que possam estar em voga, não há nada sexy nas pessoas institucionalizadas. Não têm uma voz curável, editável, palatável aos nossos apurados sentidos estéticos. Não são pessoas de interesse para os políticos. Não são grupos de interesse para o marketing empresarial. Não têm o appeal ou a mobilidade para uma dança de TikTok; não há luz suficiente nos corredores que habitam para uma selfie do Instagram. Tampouco é voluntariado internacional que fiquem bem no CV. Frequentemente nem sabem ou não podem usar o Facebook. Por detrás da penumbra, é fácil achar que eles não existem. E assim vamos alegre e deliberadamente esquecendo, até aparecer no telejornal, e mesmo assim, é conveniente nem pensarmos nas prisões e nas duras condições que impõem — não para lá de uma série americana romanceada no Netflix.
Não são pessoas de interesse para os políticos. Não são grupos de interesse para o marketing empresarial. Não têm o appeal ou a mobilidade para uma dança de TikTok.
A menos que estejamos internados ou tenhamos entes queridos internados, é mais saudável não pensar nas pessoas internadas. Mesmo com avós reféns de lares, convencemo-nos que até é pelo melhor que assim seja: longe da vista, longe do coração. São velhos improdutivos, e assim não nos pesam na alma. Doentes terminais e em hospício, o melhor é morrerem depressa, de forma limpa e sem estrebuchar. Eutanasiem-se! Já expirados, os corpos dos nossos mortos caiem no esquecimento dos cemitérios municipais, umas ossadas chatas, mais uma despesa continuada e uma burocracia que a cremação faz a gentileza nos poupar.
Mesmo que não pensemos nelas, estas pessoas existem. Vivem, sofrem, encerram nelas mundos interiores, paixões e desejos, esperança e aspirações. São todas dignas do nosso tempo e da nossa atenção. Numa sociedade que faz de tudo para ser o mais agradável e leve possível (é bom para o turismo, é bom para a métrica), convém que não nos esqueçamos das pessoas invisíveis da nossa comunidade: apenas com elas e para elas podemos construir um Mundo melhor.
A validade e a dignidade das pessoas não se confundem com a sua métrica ou potencial de viralidade.
Deve chocar-nos que nenhum partido político tenha na sua agenda um programa concreto para diminuir o número altíssimo de crianças que vivem a sua infância e adolescência institucionalizadas em Portugal. Deve revoltar-nos que na pandemia, mesmo em fase endémica, os direitos das pessoas idosas, dos doentes e dos portadores de deficiência institucionalizados continuem a ser os mais agredidos e espezinhados, sem visitas. Que as crianças institucionalizadas tenham ficado sem escola, sem interação social relevante, para além de já não terem família, de não terem casa.
As gerações cosmopolitas endinheiradas ficaram revoltadas com as restrições de mobilidade. Mas e aquelas pessoas que já à partida têm a sua liberdade limitada? Que não têm redes sociais para fazer um post sobre o assunto, nem meios de se tornar viral para estar na ordem do dia? Quem fala por elas, quem dialoga com elas?
A validade e a dignidade das pessoas não se confundem com a sua métrica ou potencial de viralidade. Numa civilização de vaidade, velocidade e imagem, faço um apelo às obras da misericórdia corporais; não por caridade, mas por um dever de decência. Menos show off, e mais ação.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.