Liberdade de Imprensa, liberdade para pensar

E por isto a liberdade de imprensa não se esgota no formalismo que lhe assegure a possibilidade e existência. A montante desta encontra-se a liberdade de pensar – de imaginar mundos diferentes daquele em que existimos.

Comemorou-se esta semana, a 3 de maio, o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, numa altura em que a população portuguesa nascida após o 25 Abril de 1974 suplanta em número aquela que viveu em ditadura. Celebra-se uma data, e um valor, que por sempre o terem gozado, muitos dão por adquirido. É agradável, e certamente penhor de sucesso, esta leveza e despreocupação com que displicentemente damos por adquiridas estas e outras.

A Liberdade de Imprensa é o direito a publicar e disseminar informação, pensamentos e opiniões, sem reservas ou censura por parte do estado ou governo, e é geralmente associada à liberdade de empresa. Conta, pois, como liberdade de imprensa a publicação e circulação de materiais como jornais, revistas, e a livre circulação de ideias por meios digitais (mass ou self-mass media, para usar a expressão de Castells). Porque esta liberdade está intimamente ligada ao papel das democracias, é objeto, em quase todos os países que o são, de proteção constitucional.

Portugal não é exceção. No nosso país este é um direito tutelado pela Constituição da República, que no artº 37º consagra a liberdade de expressão e informação, e no 38º a Liberdade de Imprensa e dos meios de comunicação social, tratando as suas manifestações, questões de independência, transparência, regulação, e a sua qualidade de bem público, consubstanciada na obrigatoriedade de um serviço público de rádio e de televisão para provisão de tais bens.

Esta liberdade não é irrestrita, e encontra os seus limites no direito penal, que em todo o caso apenas se poderá aplicar a posteriori.

Há uma razão para o estatuto especial concedido a este valor e às empresas que o prosseguem: a íntima relação da liberdade de expressão e de imprensa com a democracia, e com a criação de sociedades mais prósperas, igualitárias e inclusivas.

Trata-se de um bem que um pouco por todo o mundo está ameaçado, e um dos primeiros a ser atingido nas autocracias. Compreende-se. Um regime que se baseia na escolha e no voto popular, necessita de cidadãos informados para procederem a escolhas conscientes, e necessita do debate público de ideias para influenciar a esfera política e os desígnios e opções da comunidade. Onde não há escolha possível, a pluralidade de informação é supérflua, na melhor das hipóteses, perigosa sempre.

Em 2021, no World Press Freedom Index elaborado pelos Repórteres sem Fronteiras,[1] Portugal ocupa um honroso 9º lugar, num top que é liderado pela Noruega, Finlândia, Suécia e Dinamarca, e que tem nos últimos lugares a Coreia do Norte e a Eritreia. Sem surpresa, esta continua a ser uma vocação de risco: 2020 encerrou com 50 jornalistas mortos no exercício das suas funções, dos quais apenas 32% a operar em zonas de guerra, e os restantes atingidos em países como o México (8), Índia (4), Filipinas (3) e Honduras (3); a que se soma o facto de 387 jornalistas estarem atualmente detidos por motivos relacionados com o seu trabalho.

Queria, com estas palavras e números, deter-me na fragilidade deste bem público, cujo estatuto em 132 países está entre o “problemático” e o “muito mau”. É intuitiva no mapa dos Repórteres sem Fronteiras a relação inversa entre a Liberdade de Imprensa, o grau de desenvolvimento dos países e a qualidade das democracias.[2]

O que há de especial nesta relação entre liberdade de expressão e a nossa humanidade é que esta condiciona o pensamento e ambas se retroalimentam. As ideias que expressamos livremente geram outras ideias, e é do desequilíbrio, do antagonismo e do debate que nasce a inovação, em todas as suas declinações. É pela possibilidade de escolha que esta espécie de símio se afastou do reino da necessidade próprio da natureza para exercer o seu livre arbítrio. Num certo sentido, o homem é o único ser verdadeiramente livre, pois pode conscientemente escolher, refletindo sobre essa escolha.

E por isto a liberdade de imprensa não se esgota no formalismo que lhe assegure a possibilidade e existência. A montante desta encontra-se a liberdade de pensar – de imaginar mundos diferentes daquele em que existimos: mais perfeitos, mais solidários, mais humanos. Não sendo o único, a liberdade de imprensa é um elemento fundamental nessa viagem. Esta semana celebramos e protegemos a nossa.

[1]. https://rsf.org/en/ranking
[2]. https://www.economist.com/graphic-detail/2021/02/02/global-democracy-has-a-very-bad-year

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.