Não foi fácil encontrar cravos este ano. Melhor, acabou por ser fácil, só que até ao último momento não tive a certeza de que os poderia comprar para pôr à janela. A incerteza dos cravos suspendeu o tempo por um tempo. Nunca tinha acontecido. Nem em 1996, quando finalmente os encontrei bem vermelhos na Estação Central de Hamburgo, onde estudava, tinha duvidado de os ter para celebrar o dia.
Os que comprei no passado dia 25 de abril vinham muito fechados ainda. Deixei três nuns vizinhos de longa data, levei uns quantos aos meus pais, ofereci dois na rua a quem mos pediu – “só dois, um para mim outro para o meu filho” – em casa enfeitámos cada janela com uma jarra, depois cuidadosamente ajeitada pela minha filha. Que pena estarem tão fechados. Abrirão?
No liceu primeiro e depois na faculdade em aulas memoráveis da professora de história contemporânea, Ana Paula Rias, aprendi sobre o 25 de abril de 1974, “antecedentes e desenvolvimento”. Mas as memórias da infância passada nos anos 1980 sintetizam o 25 de abril numa única palavra: liberdade.
Do 25 de abril de criança, só me lembro disto: liberdade. No 25 de abril de 2020, como se enviasse os factos temporariamente para o esquecimento, volto a lembrar-me dessa única palavra: liberdade.
A liberdade, é evidente, não se resume num dia. Mas o dia pode ser pretexto para pensar na liberdade que temos e na que queremos continuar a ter.
As perguntas sucedem-se: aceitamos menos liberdade? Por quanto tempo e a troco do quê? Estas perguntas não são novas, mas pensar nelas exige em tempos de Covid-19 olhares constantemente renovados.
Em vários jornais, tertúlias de debate político na rádio e na TV, em (novos) palcos virtuais tão dentro de casa, não foram poucas as evocações da nossa democracia. E que bonita a festa, pá! Entre outros debates, a pandemia da Covid-19 veio acentuar a discussão acerca das eventuais restrições à liberdade a troco da segurança. Um tema que não é novidade, sobretudo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque, mas desta vez com um upgrade argumentativo: a nossa saúde.
As perguntas sucedem-se: aceitamos menos liberdade? Por quanto tempo e a troco do quê? Estas perguntas não são novas, mas pensar nelas exige em tempos de Covid-19 olhares constantemente renovados.
Sejamos claros, no caso da transmissão do vírus Sars-CoV-2 o que nos protege da infeção não é uma milagrosa e eficiente solução tecnológica, mas sim o distanciamento físico, a etiqueta respiratória, a lavagem frequente das mãos.
No entanto, fala-se da possibilidade de utilizar os dados fornecidos pelos nossos “telefones espertos”, os smartphones, para ajudar a localizar eventuais contactos com pessoas infetadas, e para nos avisar para que nos ponhamos em quarentena voluntária profilática.
Propositadamente usei na frase acima um sujeito nulo para o verbo utilizar e aí reside uma parte da controvérsia. Quem fica encarregado de nos vigiar? Quem guarda a informação que vamos “construindo” com os nossos movimentos? Em que mãos fica a vigilância em massa, os dados agregados e anonimizados (jargão imponente, este) dos cidadãos? O que vão fazer (o que fazem já) com esta informação? “Pedem-nos um ato de fé”, dizia ao El País a advogada espanhola especialista em ética de dados, Manuela Battaglini (Millones de datos de alumnos y profesores están expuestos por la educación ‘online’, 29-04-2020), em relação àquilo que as empresas como a Google fazem com os nossos dados. Que impacto tem a vigilância na nossa vida? E não, não é exatamente a mesma situação, aquela em que quem vigia são os governos, quem vigia são as empresas, quem vigia são os vizinhos… – vigiar, verbo tão ambíguo, entre o cuidar e o controlar.
Quem fica encarregado de nos vigiar? Quem guarda a informação que vamos “construindo” com os nossos movimentos? Em que mãos fica a vigilância em massa, os dados agregados e anonimizados (jargão imponente, este) dos cidadãos?
Por outro lado, é bem legítima a pergunta de Maciej Ceglowski, fundador do grupo Tech Solidarity, citado no site de notícias Politico (Privacy agenda threatened in West’s virus fight, 04/05/2020): “Para que serve criar uma arquitetura de vigilância se não a podemos usar para salvar vidas numa emergência assustadora como esta?” Não ficamos indiferentes a esta questão.
A bondade da ideia não está em causa; todavia, o problema reside na sua aplicação.
A segurança é um direito, não haja dúvidas, e também é verdade o que nos dizem: para quê esta discussão se “eles” já sabem tudo sobre nós? Se já é possível “eles” saberem o livro que comprei, o tempo que estive a procurar informação sobre máscaras comunitárias, o supermercado a que vou, e os fins de semana que passo fora de Lisboa. Mas será necessário invadir o direito à privacidade para ter segurança? Em democracia, existe uma hierarquia dos direitos?
Foi divulgado há poucas semanas o relatório do V-Dem Institute, do departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo, relativo a 2019, que anuncia que pela primeira vez desde 2001 há mais autocracias do que democracias no mundo: os regimes autoritários são 92, e neles vive 54% da população mundial; quase 35% vive em países que têm experimentado processos de autocratização, isto é, de perda de traços democráticos. Vale a pena ler o documento que, apesar deste e doutros números preocupantes, também mostra que há mais resistência a essa autocratização dos Estados e há um aumento dos movimentos que exigem mais democracia, que lutam por mais direitos e pela liberdade. O nome do instituto e do relatório refere-se às variedades (V-) da democracia (Dem), o que é um ponto de partida adequado, porque se reconhece, justamente, que havendo valores transversais a todas as modalidades, a democracia não tem uma receita única.
Deixar a segurança e os dados nas mãos dos Estados (democráticos, bem entendido) poderia parecer a resposta mais acertada, mas temos de ser prudentes. Não se trata de “desconfiar” dos governos, mas de exercer o direito à crítica e ao controlo das instituições, de que uma cidadania ativa não pode prescindir. Até porque os governos mudam e, como uma espécie de aviso a que não devemos ficar indiferentes, a Europa assiste neste momento à deriva autoritária de um dos seus Estados-membros, a Hungria de Viktor Orbán.
A História, a literatura e o cinema mostram exemplos de como as mais terríveis distopias se constroem a partir da realidade, da alteração lenta, insidiosa e secreta da realidade, para que tudo continue a parecer normal. E é como simulacro de normalidade que nascem e crescem as distopias.
Não aceitemos menos liberdade. Fazerem-nos crer que é possível trocar menos liberdade por mais segurança aproveitando a eficácia da tecnologia é uma falácia que pretende acalmar-nos, desresponsabilizando-nos: “Toma lá uma app, assim não tens de fazer mais nada, a máquina faz por ti, pensa por ti, avisa por ti, esconde por ti…” Pausa. Recomeço. “Mas não tem medo por ti. O medo é só teu. Todo teu. Para que o sintas por inteiro, porque a segurança total não é possível”.
Não aceitemos menos liberdade, não normalizemos o controlo e a vigilância. Os direitos e os valores democráticos, sobre os quais fomos construindo Estados progressivamente mais justos para todos, não devem ser postos em conflito.
Não aceitemos menos liberdade, não normalizemos o controlo e a vigilância. Os direitos e os valores democráticos, sobre os quais fomos construindo Estados progressivamente mais justos para todos, não devem ser postos em conflito. Não devemos ter de escolher entre eles, devemos, como sociedade, procurar (exigir, se for o caso) o seu equilíbrio.
Colocam-se muitas interrogações. É o momento talvez de insistir no pensar.
É esta a proposta que deixo: quando chegar a hora de descarregar uma app, que propõe que aceitemos os “termos e condições” porque “se preocupa com a nossa segurança”, em vez de carregar automaticamente no botão Aceitar, quiçá valha a pena lê-los e pensar sobre isto antes.
É uma escolha com consequências, que cada cidadão deveria poder fazer, bem informado não só sobre as suas vantagens mas sobre as consequências, ponderadas num contexto amplo, apoiado na História e na consciência dos valores fundacionais das democracias de matriz liberal.
Estamos em maio, ainda há cravos à janela. Os cravos de dia 25 de abril estavam muito fechados, mas foram cuidados e abriram. É que a liberdade não acontece por acaso.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.