Em continuidade com o caminho traçado após o Concilio Vaticano II, os jesuítas de hoje, juntamente com numerosos colaboradores, sentem-se chamados a ser servidores da fé e promotores da justiça. Entre outubro e novembro de 2016 esteve reunida a 36ª Congregação Geral da Companhia de Jesus, o órgão máximo de governo dos jesuítas, que, além de proceder à eleição de um novo Superior Geral, refletiu sobre a missão da Companhia no mundo atual. A Congregação Geral aprofundou o binómio fé-justiça referindo-se a uma «missão de reconciliação e justiça». Num mundo marcado pela violência, a desigualdade e a degradação do meio ambiente, os jesuítas e, talvez, todos os cristãos não podem encarar a luta pela justiça senão através da lente da reconciliação.
Na sua definição clássica, a justiça é a atribuição a cada um daquilo que lhe é próprio ou devido. Esta perspectiva, no entanto, parece colocar o acento exclusivamente nas «coisas» que teriam de ser distribuídas ou repartidas de um determinado modo. Nesta ótica, a justiça também tende a ser aferida em termos exclusivamente individuais, de acordo com a lógica reivindicativa do «eu tenho direito a…». Na tradição bíblica, ao contrário, a justiça é sempre relação, com Deus em primeiro lugar, e com os outros. Promover a justiça deve entender-se, portanto, antes de mais como a promoção de relações justas. Ao ligar indissoluvelmente a reconciliação à justiça é possível encarar esta última como uma realidade dinâmica, um processo, um caminho a percorrer, em vez de uma mera clarificação da situação já existente.
Uma tentação do nosso contexto contemporâneo ocidental, alimentada pela sociedade do consumo e da comunicação, é a de encarar as circunstâncias que contribuem para o mundo dilacerado que enche os nossos noticiários como realidades que, embora sendo verdadeiras, graves e até preocupantes, permanecem longínquas. No fundo, a injustiça, mesmo quando reconhecida, é sempre culpa de outros. Ao pôr no centro da reflexão e do trabalho pela justiça a ideia de reconciliação, obrigamo-nos a reconhecer que a divisão está bem perto de nós e, muitas vezes, atravessa o nosso próprio coração. Não há distanciamento possível! Também nós contribuímos para criar e alimentar estruturas injustas, para promover exclusão e desigualdade. Talvez não tenhamos parte visível nos grandes conflitos que ameaçam a paz e a estabilidade mundiais, mas as nossas palavras, os nossos gestos e omissões são sempre oportunidade para estabelecer relações que promovem o outro, ou ocasião para semear a desconfiança, a divisão, a minha «promoção» à custa de quem deixo para trás. Desde as escolhas no supermercado às possibilidades de participação cívica, passando pelo modo como gerimos a carreira e as relações profissionais, tudo na nossa vida é relevante para o estabelecimento de relações justas.
A reconciliação está, sem dúvida, no centro da missão de Jesus e do seu estilo e marca decisivamente, portanto, a essência do ser cristão em três aspetos. Em primeiro lugar, o permanente convite de Jesus à conversão obriga-nos, a cada um, a reconhecer o nosso próprio comprometimento com a injustiça, a nossa quota-parte de responsabilidade nas feridas do mundo, tanto perto como longe. Em segundo lugar, o anúncio de Jesus afirma uma clara preferência pelos pequenos, os últimos, os pobres e excluídos. Construir um mundo mais justo exige portanto, antes de mais, tomar partido pelos injustiçados. Por fim, a radicalidade do amor a que somos convidados inverte a lógica «mundana» da luta pelos próprios direitos ao convidar a vítima a dar o primeiro passo, o do perdão.
O horizonte da reconciliação permite, pois, renovar uma relação com Deus desprovida de qualquer espiritualismo e uma relação com o outro enquanto membro da mesma comunidade e não um adversário ou concorrente, sem esquecer uma relação com a criação assente no cuidado. A reconciliação, como centro e inspiração da missão a que os cristãos somos chamados, permite-nos encarar a urgência do trabalho pela justiça como um caminho partilhado e não uma cruzada, como uma transformação que começa nas nossas opções e estilo de vida e não uma utopia abstrata e inalcançável.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.