Isabel dos Santos somos todos nós

Para lá das grandes proclamações e do silencioso coro do «todos sabiam», a grande pergunta que permanece em cima da mesa é: o que é que este caso nos ensina? O que é que vai mudar, depois dos 'Luanda leaks'? Se não formos nós: nada!

A última semana ficou definitivamente marcada (e a saga continua…) pelas revelações relativas a irregularidades envolvendo a atividade empresarial de Isabel dos Santos. A filha do ex-presidente angolano, apelidada ‘mulher mais rica de África’, terá desviado, de acordo com documentos revelados por um consórcio jornalístico, milhões de euros da petrolífera pública Sonangol para contas pessoais.

Tal como em anteriores casos de fugas de informação maciças (Wikileaks, Panama papers, etc.) não tardaram as reações por parte do mundo da política e dos negócios, primeiro cautelosas, mas depois rapidamente assumindo uma postura defensiva que levou ao desconvite de Isabel dos Santos para uma intervenção em Davos e, sobretudo, à ‘purga’ das suas significativas participações em empresas estratégicas da economia portuguesa. De repente, levantou-se entorno de Isabel dos Santos uma espécie de cordão sanitário pelo qual ninguém se atreve a defendê-la (nem mesmo invocando a presunção de inocência), ninguém sequer recorda tê-la recebido – muito menos elogiado – ou mesmo trabalhado com ela e para ela…

No universo do comentário jornalístico (e, imagino, também ao nível do cidadão comum) o tom foi sobretudo oscilando entre «estava-se mesmo a ver» e «toda a gente sabia». É certo que Isabel dos Santos nunca antes tinha sido ‘apanhada’, mas poucos meteriam a mão no fogo por uma riqueza construída à sombra de um regime conhecido pelos elevados níveis de corrupção (pacificamente apelidado de cleptocracia). Num país riquíssimo em reservas naturais, mas vítima de uma desigualdade galopante, a fortuna pessoal de Isabel dos Santos não poderia deixar de levantar suspeitas (imaginamos facilmente o escândalo que seria uma situação análoga, em Portugal…).

Não querendo maçar o leitor com mais uma variação de «eu sabia…», parece-me que a grande pergunta que permanece em cima da mesa é: o que é que este caso nos ensina? O que é que vai mudar, depois dos Luanda leaks?

Bom, em primeiro lugar, parece que para a própria Isabel dos Santos a vida dificilmente voltará ao normal! Resta saber se as consequências se vão concretizar na direção de uma verdadeira justiça, ou se apenas ficará ‘condenada’ a gastar (e talvez acrescentar) os seus milhões de uma forma mais discreta. Embora haja pouco que possamos fazer neste campo, cabe-nos a todos estar atentos ao desfecho deste caso particular, não só para a sua principal protagonista, mas também para os muitos cúmplices que favoreceram, com maior ou menor intensidade, a situação que hoje todos repudiam. Por outro lado, a própria forma como o caso está a ser gerido pelas altas esferas da política e da economia deixa entender que o sistema que criou o ‘monstro’ Isabel dos Santos se prepara para sair ileso desta crise: a mensagem é clara, trata-se um caso isolado, de um problema pessoal, de uma atuação estritamente individual… Ou seja, rapidamente voltará tudo ao ‘business as usual’, como está claro pelo pouco impacto que tiveram as ameaças de crise económico-financeira nas empresas afetadas, pressagiada pela própria Isabel dos Santos.

Isto leva-nos àquilo que me parece ser o nó do problema: o clima de tolerância à corrupção em que vivemos, em Portugal de modo particular.

Isto leva-nos àquilo que me parece ser o nó do problema: o clima de tolerância à corrupção em que vivemos, em Portugal de modo particular. Corruptor e corrompido nada poderiam fazer (pelo menos seria muito mais difícil) se existisse um ambiente de repúdio generalizado e radical da corrupção, em todas as suas formas. Neste caso, como noutros, o sentimento geral segundo o qual «toda a gente sabia» pressupõe um correspondente «(quase) ninguém disse nada». Penso em quem hoje rasga as vestes e brada aos céus como amante traído; penso em quantos não se importaram de fazer negócios com Isabel dos Santos, enquanto o tal «sabia» não era apoiado por documentos públicos; penso sobretudo na passividade da opinião pública (eu incluindo) que deixou andar, até hoje, até não ser mais possível manter a cabeça na areia (com quanto prejuízo para o bem-estar do povo angolano?).

Se todos sabiam, porquê só agora o nome Isabel dos Santos se tornou tóxico? Claro que os ‘crimes de colarinho branco’ são de grande complexidade e poucos dominarão a sofisticação dos esquemas envolvidos (veja-se a quantidade de empresas offshore de que se tem falado neste caso), mas esse é o problema da justiça formal. Aprendi há anos de um magistrado que existe uma grande diferença entre a «presunção de inocência» tutelada pela lei e pelo sistema judicial, e a «convicção» de inocência (ou de culpabilidade) que cada um de nós pode formar, de forma ponderada, racional e crítica. Está nas mãos de cada um de nós agir de acordo com tal convicção: na altura de votar, ou de ir às compras, ao comentar uma notícia nas redes sociais ou no café da esquina… Já os romanos diziam ‘pecunia non olet’? – o dinheiro não tem cheiro – mas não tem de ser assim! Podemos (e devemos) questionar-nos acerca de onde vem o dinheiro e, mais em geral, as coisas que usamos, os capitais que nos financiam, etc.

A corrupção é um problema de todos, que não deve apenas ser relegado para a intervenção fiscalizadora do Estado (até porque, por definição, é uma das partes envolvidas, de uma forma ou de outra). Exigir transparência e recusar qualquer participação em esquemas de corrupção está ao alcance de todos (mesmo que isso signifique, a curto prazo, pagar mais caro…). Compete a cada um viver de forma crítica o ‘jogo’ do mercado, impondo à economia e ao sistema capitalista a componente ética que um liberalismo deixado a si mesmo não é capaz de produzir.

Numa palavra, se não fizermos a nossa parte, todos seremos Isabel dos Santos…

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.