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Assistimos a uma enorme polémica em torno da apresentação do livro “Identidade e Família” pelo ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Este serviu de pretexto para uma profunda discussão sobre o sentido social da família e outras questões a ela associadas, opondo visões conservadoras/tradicionais a visões liberais/progressistas – não me quero, aqui, comprometer com qualquer qualificação.
Um dos pontos que parece variar mais de um campo para o outro é a liberdade que existe na família – fala-se do casamento de pessoas do mesmo sexo, da adoção por parte destas pessoas, da liberdade que a família tem para educar os filhos, da igualdade que deve existir no casal. Passo ao lado da crítica que tem sido feita à “armadilha” – assim lhe chamou Ricardo Costa – que é discutir este tema com base em duas posições extremadas. Acompanho esta crítica, porém, vejo ainda uma outra crítica a fazer à forma como se fez esta discussão.
De facto, a liberdade que é vista como o ponto essencial de quem debate este tema é, exclusivamente, a liberdade do casal, nomeadamente a liberdade dos pais ou das mães. Raramente, há espaço para discutir a liberdade que se dá à criança,[1] o que seria relevante em alguns dos âmbitos discutidos. Debrucemo-nos, pois, sobre a questão da educação, sendo certo que esse não é mais do que um exemplo paradigmático do estatuto reservado à criança.
Na questão da educação, a grande discussão gira em torno de quais devem ser as atividades e conteúdos obrigatórios para as crianças e, nomeadamente, quem deverá ser responsável por transmitir os conteúdos que se inserem, essencialmente, na polémica disciplina de Cidadania. Sumariando e simplificando a discussão, temos quem defenda que cabe às famílias transmitir grande parte do conteúdo da disciplina e que deverão ser também estas quem toma o conjunto das decisões relativas à frequência de certas disciplinas e atividades consideradas (por estes) extracurriculares. Outra visão é a de quem entende que o Estado deve assumir essas tarefas, restringindo a liberdade das famílias na seleção desses conteúdos e atividades, em nome de outros valores sociais e democráticos.
Como disse, parece-me que esta simplificação é muito negativa quando se procura discutir o tema nestes termos, mas o essencial, para este artigo, é que a discussão é colocada nos termos do equilíbrio entre o espaço que se dá aos pais e o espaço que se dá ao Estado, na educação da criança. Alguns parecem crer que são os pais quem melhor tutela os interesses da criança, outros acreditam que se trata do Estado. Todos parecem ignorar que a criança tem o direito a decidir, por si, aquilo que é melhor para ela, nalgumas situações. Pelo menos, tem direito a ser consultada e a que a sua opinião seja tida em conta, participando na decisão final. Sobretudo, todos parecem ignorar que poderá haver (muitas) situações em que o interesse da criança é contrário tanto ao interesse dos pais como ao do Estado.
Sobretudo, todos parecem ignorar que poderá haver (muitas) situações em que o interesse da criança é contrário tanto ao interesse dos pais como ao do Estado.
Vejamos os contributos de Martha Fineman, eminente filósofa do Direito, que identifica os interesses contraditórios na educação.[2]
O primeiro interesse que salienta é o de contribuir para uma cidadania informada e disciplinada que permita a manutenção das estruturas e instituições sociais. Trata-se de um âmbito em que, naturalmente, são privilegiados os interesses do Estado, enquanto instituição social, que procura manter o status quo.
De seguida, um outro interesse é avançado: o de transmitir responsabilidade para com a família, a comunidade e as instituições cívicas. Este objetivo vai ao encontro dos interesses dos pais que valorizariam a manutenção das ligações familiares. Parece-me que tanto o primeiro como o segundo interesse se traduzem num conformismo social, que pode exercer pressão sobre a criança para que esta não procure causar qualquer rutura social.
Finalmente, um terceiro interesse é considerado: o da “auto-atualização” permitida pela educação. Esta consiste na possibilidade de a criança ganhar autonomia através dos conhecimentos que obtém. Esta perspetiva pode pôr em causa tanto os interesses do Estado como o dos pais. Refere-se, por demais, que os pais se confrontam com um dilema, já que serão obrigados a escolher entre deixar a criança seguir um caminho em que a educação poderá permitir-lhe ganhar mobilidade social, ou obrigar a criança a manter a sua posição social – a mesma que a dos pais – mesmo que isso implique recuos no próprio acesso à educação.
Apesar de Fineman levantar todos estes interesses conflituantes, acaba – incompreensivelmente – por concluir que se deve apenas encontrar um novo equilíbrio que privilegie os pais face ao Estado, relegando para segundo plano, mais uma vez, a criança.
Da mesma forma, quando se discute o papel da família e do Estado na educação, deixa-se a criança para segundo plano. Não se considera a criança enquanto sujeito de direitos, nomeadamente do direito a participar nas decisões que lhe dizem respeito. Ora, esse é um direito de que qualquer criança goza em virtude, desde logo, da Convenção sobre os Direitos da Criança, que vigora, em Portugal, desde 1990.
Não havendo sequer espaço para introduzir a criança nesta equação, ficamos muito limitados na possibilidade de pensar qual seria o papel da criança. Que decisões poderiam ficar a cargo da criança? A partir de que idade poderia ser a própria criança a decidir? O que dizem as próprias crianças sobre a ideologia de género? O que dizem sobre a Cidadania enquanto disciplina e os conteúdos que são transmitidos? Em que medida pode a criança tomar decisões sobre o seu próprio currículo? Que atividades extracurriculares ficam ao seu critério?
Para dar este passo, é essencial que deixe de se olhar para a família como uma unidade comandada pelo(s) pai(s) e/ou mãe(s), em que a criança é um elemento passivo cujos direitos são exercidos pelo vencedor de uma antiga batalha que oporia os pais ao Estado.
Quando se discute a liberdade e a igualdade no seio da família, não se pode excluir liminarmente as crianças. Pelo contrário, enquanto sujeitos de direitos, enquanto pessoas, as crianças têm direito à liberdade e igualdade, na sua própria medida. Têm, sobretudo, direito a que a sua opinião seja considerada e valorizada naquilo que lhes diz respeito, sendo a educação um pilar essencial na vida de qualquer criança.
Que nestas discussões sobre a família, a liberdade e a igualdade, as crianças possam, cada vez mais, aparecer como atores principais das suas próprias vidas.
[1] Entendemos, aqui, criança como qualquer pessoa com menos de 18 anos, à semelhança de instrumentos normativos como a Convenção sobre os Direitos da Criança.
[2] FINEMAN, Martha, “Taking Children’s Interests Seriously”, in What is Right for Children – The Competing Paradigms of Religion and Human Rights, Ashgate, 2009, pp.229-237.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.