Chega-se a Assis por estradas que serpenteiam, entre curva e contracurva, a neve a pintar as bermas e a cidade de Francisco coberta de neve. É inverno, está frio e só uma bicicleta encostada num muro denuncia a presença de pessoas. O presépio com figuras de dimensões humanas acolhe o visitante da Basílica de São Francisco, onde a vista se perde pelo vale branco.
Cheguei a Assis por causa de Nick Cave. Perguntaram-lhe como ia passar ele o dia Natal, e se gosta de ouvir canções da época, e o músico antecipou com detalhe esse dia, entre idas à praia e à missa, salpicando o texto com comida e bebida e referências musicais, para assim dizer que também gosta de ouvir os clássicos de Natal (e não, não são os Wham!).
Para ilustrar a prosa, em que a banalidade quotidiana se entrelaça com a poesia, Nick Cave escolheu a Natividade de Giotto — e daí saltei para Assis, da memória daqueles frescos, na igreja alta e na igreja baixa, de uma arte e magnificência que inquieta e nos transporta de forma viva para Deus. A obra de Giotto é de 1304, num tempo que nos habituámos a associar às trevas, quando hoje os tempos não serão tão luminosos como gostaríamos ou desejamos.
Entre a música e a pintura descobrimos sempre formas próximas de falar com Deus, mesmo quando a Igreja dos homens nos inquieta mais do que desinquieta. E ao trazermos a linguagem das artes para esta relação é, de facto, por a arte ser um refúgio necessário quando nos falham os homens.
Não nos falha Herberto Helder, que disse-nos que “através da mãe o filho pensa/ que nenhuma morte é possível”, e logo fomos beber de novo ao texto de Nick Cave, sobre o significado do Natal: “Recordarei também, no meio de tudo o que se faz e do que se faz, o princípio energizante em torno do qual gira este dia, que fala tão eloquentemente de renascimento e de renovação, e do fim da espera — o de uma mãe que dá à luz uma criança num estábulo, revitalizando o mundo para toda a eternidade.” Neste ano novo, perante tanta desesperança (e desespero), da Faixa de Gaza à Ucrânia, do Sudão ao Iémen, entre outros tantos pontos de um mapa de conflitos, só falta a humanidade estar à altura.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.