Fratelli Tutti é um dos textos mais importantes deste século. É um grito de união para todos, todos, todos

Este é um apelo universal, para todos os tempos e lugares, um apelo com uma atualidade que importará sublinhar. Nunca como hoje estivemos tão globalmente desunidos, desconfiados, intolerantes face ao “outro”.

Fratelli Tutti é a terceira encíclica do Papa Francisco, e foi publicada a 3 de outubro de 2020. Este texto, inspirado nos ensinamentos de São Francisco de Assis, aborda áreas essenciais para a vida em sociedade, como o tema da fraternidade ou o conceito de amizade social. Neste texto, o Papa Francisco critica a indiferença e a desigualdade que marcam as sociedades contemporâneas, apelando a que se crie um mundo mais unido e fraterno. Francisco, nascido Jorge Mário Bergoglio, enfatiza a importância de acolher os migrantes, cuidar dos pobres e marginalizados ou de combater a xenofobia e o racismo. Além disso, o testemunho papal defende uma economia que valorize a dignidade humana e o trabalho, em oposição a uma economia que tem como prioridade o lucro. Esta encíclica é também uma carta de chamada à construção de uma cultura de paz e reconciliação, em que se apela ao diálogo inter-religioso e à colaboração entre diferentes culturas e religiões como forma de superar conflitos e promover a harmonia. Bastava este conteúdo inicial para que fosse um importante grito unificador da humanidade contemporânea e regenerador do papel da Igreja e, sublinhe-se, um apelo pleno de atualidade num tempo de guerras culturais, territoriais e identitárias.

Num tempo em que as instituições internacionais do pós 2ª Guerra Mundial, designadamente as Nações Unidas (mas também os tribunais internacionais) parecem tolhidas pela ineficácia, num tempo em que os equilíbrios da geopolítica global se apresentam em desequilíbrio, num tempo em que as democracias parecem inaptas para os desafios internacionais e globais do século XXI, a importância de “virar o mundo ao contrário”, voltando a um humanismo global, parece um mapa claro para o único futuro possível.

A importância de falar sobre todos e para todos dedicando-lhes, dedicando-nos, uma promessa de esperança de um futuro melhor é uma escolha de alguém que, vivendo a Igreja por dentro, vindo do sul global, tendo trabalhado com populações vulneráveis, sendo um competente teólogo social, compreende que a sua palavra é a voz de uma alternativa desbloqueadora de impossíveis. Não é apenas uma ideia, é um desígnio.

A importância de falar sobre todos e para todos dedicando-lhes, dedicando-nos, uma promessa de esperança de um futuro melhor é uma escolha de alguém que, vivendo a Igreja por dentro, vindo do sul global, tendo trabalhado com populações vulneráveis, sendo um competente teólogo social, compreende que a sua palavra é a voz de uma alternativa desbloqueadora de impossíveis. Não é apenas uma ideia, é um desígnio.

Mas a Fratelli Tutti tem ainda outras ligações que eu gostaria de destacar. Há um outro Francisco neste trio de Franciscos que lideram a procura do bem comum. Há uma continuidade quântica entre esta encíclica e a vida e missão de São Francisco Xavier, um dos fundadores da Companhia de Jesus, um descobridor do mundo pela palavra e pela missão. Uma ligação que surge através dos conceitos de fraternidade universal ou do de diálogo intercultural, temas que atravessam tanto os exemplos de Francisco Xavier como a visão do Papa Francisco e, bem assim, a vida e obra de São Francisco de Assis. A Fratelli Tutti enfatiza a fraternidade e amizade como princípios fundamentais para construir um mundo mais justo e unido. É como se à Liberté, Égalité, Fraternité, juntássemos agora a Amitié para que a humanidade se completasse em nós.

O Papa Francisco chama a nossa atenção para a necessidade de superar as barreiras culturais, sociais e religiosas que dividem a humanidade, propondo um caminho de encontro e diálogo. São Francisco Xavier exemplificou essa fraternidade universal ao longo da sua vida enquanto missionário. Viajou para culturas e regiões muito diferentes, como seriam a Índia, o Japão ou as Ilhas Molucas do século XVI, com o desejo genuíno de criar laços com as pessoas que encontrava, independentemente das suas origens ou das suas crenças. São Francisco Xavier foi um dos primeiros missionários a adotar uma abordagem de diálogo em vez de uma teologia da imposição. Não via as outras religiões como inimigas, mas como oportunidades para o diálogo e a partilha de valores comuns. Esta atitude refletia um reconhecimento de que, mesmo nas religiões e culturas diferentes, há valores morais e espirituais que devem ser respeitados e que oferecem pontos de contato para um diálogo construtivo. A sua abordagem era, portanto, menos uma “teologia da imposição” e mais uma “teologia do encontro”, onde o objetivo era o de encontrar maneiras de partilhar e que acabou por abrir caminhos para uma compreensão mais respeitosa e colaborativa entre religiões.

Também o Papa Francisco, em Fratelli Tutti, nos exorta a ser construtores de pontes e a superarmos as barreiras que dividem pessoas e nações, pedindo que todos os cristãos, todas as pessoas de boa vontade, trabalhem para unir a humanidade num espírito de solidariedade e cooperação. Este é um apelo universal, para todos os tempos e lugares, um apelo com uma atualidade que importará sublinhar. Nunca como hoje estivemos tão globalmente desunidos, desconfiados, intolerantes face ao “outro”.

Na busca do lucro imediato, do prémio, do louvor, da visibilidade instantânea, da fama ou do proveito, há algo de colonizador que nos afasta uns dos outros. Nem nos damos conta que sem o passo na direção do “outro” criamos fronteiras que nos impedem de fruir das erudições de cada um e de evoluirmos lado a lado como irmãos.

Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco menciona a importância de respeitar as culturas e as tradições locais, escreve sobre a necessidade de um encontro que respeite a identidade e a dignidade de cada povo, evitando imposições ou atitudes colonizadoras. Sim, porque o colonialismo e a sua mentalidade de exploração podem existir aqui, não precisam de ser territorialmente difusos. A opressão, exploração, intolerância, xenofobia, racismo ou discriminação, marcas do colonialismo intemporal, subsistem hoje, existem em cada um de nós como tentação para a abordagem mais fácil do “outro”. Na busca do lucro imediato, do prémio, do louvor, da visibilidade instantânea, da fama ou do proveito, há algo de colonizador que nos afasta uns dos outros. Nem nos damos conta que sem o passo na direção do “outro” criamos fronteiras que nos impedem de fruir das erudições de cada um e de evoluirmos lado a lado como irmãos.

No último verão, pelo Alentejo da Raia, esse espaço que une e separa, encontrei uma estátua de homenagem ao Comendador Rui Nabeiro, em Campo Maior, onde, na sua base, está escrita a frase inicial da maior utopia contemporânea: “Se todos quiséssemos o mundo seria extraordinário”. Era só isto!

 

*fotografia de Miguel Cardoso na JMJ 2023

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.