Uns preferirão actividade física intensa ou noitadas de algum excesso, outros mais pacatez, muitas horas de sono, leitura e recolhimento, ou mesmo uma mistura de tudo isto. O que é certo é que as férias são uma bela invenção, a que ninguém se faz rogado e cuja consagração legal todos agradecemos penhoradamente.
Nem todas as férias, no entanto, suscitam bons sentimentos (chamemos-lhe «sentimentos» e conotemo-los como «bons»). Porque férias há que não podemos gozar mas que outros gozam (e até exibem) – e bem sabemos como é a natureza humana quando olha para a vizinha – e porque, nestas tais férias que não gozamos, umas há que nem sequer compreendemos, o que não nos impede de as julgarmos «inaceitáveis!» ao ponto de não deverem sequer existir (é destas que quero falar). São, digamos, umas férias impopulares, o que, tratando-se de férias, soará a paradoxo.
Deixemos, assim, de lado «as férias dos outros que não podemos gozar». Especialmente aquelas em cenários idílicos, paradisíacos e longínquos (de montanha, de praia, de floresta ou de deserto, dependendo dos gostos, dos sonhos e, já agora, da companhia). Não que não sejam férias boas que não possamos ambicionar. Mas porque não é dessa «inveja» que aqui quero tratar. É antes da que, indignados, dirigimos às ditas férias que nem sequer compreendemos. Refiro-me às férias judiciais.
O tema das férias judiciais é tudo menos consensual, é tudo menos compreendido e, sobretudo, ao contrário do que o nome sugere, é tudo menos férias. Dá-se o caso, aliás, de nem sequer ser uma ideia cuja consagração colha consenso entre os profissionais do foro (magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, advogados, oficiais de justiça). Eu explico.
Numa qualquer FAQ (ao acaso sugiro a disponível no site da Procuradoria Geral Distrital do Porto) as férias judiciais «são os períodos de férias nos tribunais que decorrem de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro, de domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e de 16 de Julho a 31 de Agosto; os actos processuais não são efectuados em férias judiciais, a não ser, entre outros, os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas». Em férias judiciais, os processos urgentes (onde cabem as conhecidas providências cautelares, por exemplo), os processos relativos a casos de violência doméstica, os processos de família e menores ou mesmos os processos de insolvência, correm normalmente nos Tribunais, têm audiências, mobilizam funcionários, magistrados e advogados em condições de absoluta normalidade.
Em férias judiciais, os processos urgentes (onde cabem as conhecidas providências cautelares, por exemplo), os processos relativos a casos de violência doméstica, os processos de família e menores ou mesmos os processos de insolvência, correm normalmente nos Tribunais, têm audiências, mobilizam funcionários, magistrados e advogados em condições de absoluta normalidade.
Ora, como bem se vê, terá havido uma certa generosidade ou ilusão do legislador destinando o termo de «férias» a uma mera mora nos prazos em processos normais (que é, no fundo, do que se trata). E dessa generosidade (sou eu a ser generoso no adjectivo) nasceu a ideia de que em período de férias judiciais os profissionais do foro gozam de férias, não têm audiências, não sofrem com os prazos a correr, e, portanto, têm uma vida boa.
Do conceito à ideia generalizada que vingou, ressaltam duas outras ideias que valerá a pena denunciar. A primeira passa pela ilusão (mais uma) de que os profissionais do foro apenas trabalham em tribunal (e por aí se explica que estando os tribunais fechados – que não estão …– nada terão que fazer). Talvez se possa dizer que os magistrados até poderão conhecer um período de menor pressão, mas basta olhar ao número de processos a aguardar sentença para logo concluir que trabalho não faltará. Mas o que se impõe dizer é que a vida dos tais profissionais do foro não se esgota, de todo, nos tribunais e nos processos. Os problemas por resolver, os contratos a celebrar, as urgências administrativas, as consultas, os crimes, as dúvidas, as companhias, mantêm-se em agosto como em julho, no final do ano como a meio. E não há qualquer paragem de prazos processuais que assegure «férias» e tranquilidade.
Já a segunda ideia que vingou – esta vinga sempre, seja qual for o tema ou a realidade – é a de que, em boa verdade, sobretudo os juízes mas também os advogados têm uma vida muito melhor do que a de todos os demais. É uma das «filhas» (se legítima ou ilegítima, pouco releva) da ideia que alimentamos a todo o transe, de que a vida dos outros é sempre melhor do que a nossa.
Não creio que esta última ideia (e a primeira também) se combata com a defesa dos juízes e dos advogados. Nem sequer com a defesa da necessidade de se perceber o alcance da consagração legal das «férias judiciais» (exercício a que me propus acima, mas seguramente em vão). A ideia de que a vida dos outros não é nem melhor nem pior do que a nossa, e no caso a ideia, anterior, de que a actividade dos profissionais do foro (como todas as outras) tem as suas especificidades e complexidades, só se pratica quando nós próprios cedermos à óbvia constatação de que não somos nem mais nem menos do que todos os demais, de que as nossas próprias provações, por serem nossas, não são as mais exigentes, e que do outro lado haverá também dificuldades a vencer. Talvez seja essa presunção (que exige alguma humildade e menos umbigo) o desafio a praticar.
Boas férias a todos! Sejam ou não judiciais …
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.