No passado dia 12 de junho, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) condenou o Estado português a indemnizar o antigo ministro e deputado Paulo Pedroso, implicado no processo Casa Pia em 2003, detido preventivamente durante vários meses e depois libertado e ilibado, sem chegar a ser levado a julgamento. A mistura do elemento político com a repulsa provocada pelos crimes imputados (estamos a falar de crianças e adolescentes confiadas à tutela do Estado e abusadas sistematicamente!) contribuiu para escaldar os ânimos e, com a ajuda da comunicação social, trazer o julgamento para a praça pública.
Apesar de terem passado 15 anos, durante os quais nunca foi posto em causa o afastamento de Paulo Pedroso do caso Casa Pia, um olhar às reações nas caixas de comentários da última semana permite perceber que as “certezas populares” permanecem intactas:
Hipótese 1: com a sua teia de influências, o PS (ou parte dele) conseguiu safar um dos seus e mais uma vez assistimos ao modo como os poderosos conseguem escapar à Justiça!
Hipótese 2: comprova-se que se tratou sempre de uma cabala contra o PS (ou parte dele) e que o Paulo Pedroso foi atirado para a lama para servir interesses pessoais, com a conivência ou cumplicidade do sistema judicial!
Estas duas teses representam duas posturas paradigmáticas, opostas ideologicamente e irmanadas na sua visceralidade, e quem de nós pode presumir de um olhar frio, sem pender instintivamente para um ou outro lado? O confronto com este caso mediático (entre outros) obriga-nos a questionar-nos acerca do funcionamento da justiça, da igualdade perante a lei e da perturbação que os distintos “poderes” exercem sobre a sua aplicação… Mas, mais ainda, convida-nos a avaliar as nossas opções de fundo sobre aquilo que significa viver em sociedade, e que tipo de convivência queremos construir. O tema é vastíssimo e não se esgota no espaço de um artigo de opinião. Atrevo-me a propor apenas duas linhas de reflexão.
A primeira consideração diz respeito à presunção de inocência. Este princípio basilar do Estado de direito afirma que ninguém pode ser tido por culpado até prova do contrário através de um processo judicial, com sentença definitiva. Por detrás desta afirmação está o reconhecimento do monopólio do Estado no exercício da justiça, em particular da repressão penal. Enquanto cidadãos, somos chamados a renunciar ao uso da força na defesa dos bens individuais e coletivos que consideramos ameaçados. Viver debaixo do “império da lei”, em alternativa à autodefesa e à prevalência do mais forte, significa remeter para instituições, por definição distantes ou frias, a tarefa de punir o mal cometido.
Esta “escolha fundamental” não se justifica, em primeiro lugar, por um critério de eficiência, mas pela consciência de que só através de um mecanismo objetivo e formal é possível oferecer uma resposta ao mal, que seja coerente com a dignidade de todo o ser humano, seja ele vítima ou criminoso. A presunção de inocência é, portanto, uma “formalidade” que a sociedade democrática deve tutelar e defender, enquanto regra básica de convivência, frente aos variados apelos dirigidos às nossas paixões e instintos. Trata-se, em última análise, de uma escolha e de uma aposta no funcionamento de instituições, correndo o risco de elas falharem o alvo. No fundo, viver e construir um Estado de direito é aceitar que é melhor deixar fugir algum criminoso do que condenar um inocente!
A segunda consideração, em tensão com a primeira e não menos fundamental para a democracia e tutela da dignidade humana, é o desafio de alimentar e exercer um sentido crítico individual e coletivo. Assumir o princípio da presunção de inocência não exime cada um de nós de formar a própria opinião e convicção. Remeter toda a avaliação penal (expressão de uma ética partilhada) para o domínio da lei e das instituições não é menos perigoso para a sana convivência do que exercer a justiça pelas próprias mãos! Cada um de nós é chamado a reconhecer o mal, quando ele se manifesta e, consequentemente, pode (e por vezes deve) formar um juízo pessoal tendo em conta os elementos disponíveis. A minha convicção de que um determinado político “mente”, “rouba” ou “é corrupto”, poderá não ser verificada nos tribunais, mas não deixará de ter outro tipo de consequências.
Para a promoção e possibilitação deste espírito crítico, a comunicação social tem um papel essencial através de uma busca pela verdade que não está submetida a todas formalidades do poder judicial, mas nem por isso deixa de ter o dever da objetividade. Não faria sentido exigir dos jornalistas uma aplicação estrita da presunção de inocência, no sentido de não divulgar factos e comportamentos que não tenham sido provados em tribunal, mas também não é admissível uma excessiva facilidade no lançamento de acusações que conduzem à “condenação mediática”, com danos muitas vezes irreparáveis.
O desfecho do caso Paulo Pedroso até nos pode deixar descontentes, se for contrário à nossa – mais ou menos fundada – convicção íntima acerca da sua culpabilidade, mas é com certeza um sinal positivo do funcionamento das instituições e do Estado de direito. Acolhê-la é reafirmar a aposta na formalidade enquanto garantia de dignidade e, porque não, deixar-nos também questionar sobre a formação da nossa “sentença particular”.
(A decisão do TEDH pode ser consultada na íntegra, em francês)
Foto de destaque: edifício do TEDH.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.