Etnomatemáticas

As quatro 'etnomatemáticas' que explorei nestas linhas (mais ou menos fiéis ao prefixo 'etno'!) procuram só ensaiar relações e mediações desta disciplina com outras áreas e lugares da vida, onde se encontram realidades muito mais essenciais

1. O ano passado tive uma aluna chilena com uma extraordinária capacidade de cálculo mental. Utilizava técnicas próprias, muito diferentes. As escolas onde tinha estudado – e o próprio currículo chileno – preferem trabalhar a sério o cálculo mental. Por isso, ‘dão’ menos a matéria a correr. ‘Perdem’ tempo a ensinar técnicas de cálculo porque acreditam que é importante. Cá não é assim, como sabemos. A calculadora entra nos finais do 5° ano e ficamos por ali. Esta jovem estudante sul americana precisava de explicações sobretudo para ‘apanhar’ a matéria, que no nosso país damos a correr. Confundimos exigência com pressa.
São conhecidas as formas de cálculo mental chinesas e de Singapura. A plataforma Khan Academy, iniciada na Índia por um professor engenheiro que sonhava abranger mais alunos do imenso ‘continente indiano’ é uma forma muito interessante de aprender e treinar matemática: rapidamente se espalhou por todo o mundo e está traduzida em várias línguas. Noutras latitudes haverá outras formas de trabalhar os números. Noutras longitudes certamente se aprenderá matemática de formas diversas. Estas realidades configuram uma efetiva etnomatemática, geográfica.

2. Aqui em Lisboa também há diversidade nas aprendizagens.
Atualmente, com as explicações a alunos de várias escolas secundárias e colégios diferentes, noto isso diariamente. Os currículos são os mesmos: a forma de os trabalhar é muito distinta. Há colégios com um moodle fantástico, para alunos de todos os níveis e capacidades. Há outros que apostam na repetição dos mesmos exercícios, em detrimento da quantidade (non multa sed multum). Há colégios que apostam forte numa grande exigência, puxando a sério! Há escolas com professores muito experimentados que sabem distinguir bem o essencial do acessório, propondo os três ou quatro exercícios-chave com os quais se aprende o essencial de cada matéria. Escolas há que promovem mais alunos tipo ‘máquina’ a fazer exercícios e outras que apostam em educar mais o sentido crítico, e várias tonalidades intermédias. Com toda esta diversidade, alargando o significado do prefixo “etno”, posso dizer que experimento uma certa forma de ‘etnomatemática’ local: a da diversidade didática.

3. Dentro dos vários estudos escolares, a matemática é a melhor disciplina para desenvolver a atenção. É simultaneamente específica e abrangente, tem muita matéria para trabalhar (geometria, álgebra, aritmética, trigonometria, etc), obriga a focar por tempos longos e consegue ser extremamente desafiante. A cada aluno peço a atenção necessária para estar uma hora, no mínimo, totalmente concentrado e focado naquela matéria e naqueles exercícios concretos. Papel e lápis e o mínimo de tecnologia de apoio. Tudo um bocado contracorrente!

A atenção é o mais importante. Simone Weil tem um belíssimo ensaio em que fala disso com muita propriedade [1]. Para a filósofa francesa, uma atenção de qualidade traz tudo o mais necessário: até a futura capacidade de rezar. Importa dominar bem o instrumento matemático de per si: os conteúdos, as regras, os teoremas, as nuances e truques, etc. Sabemos, porém, que poucos usarão equações e expressões algébricas na vida futura. Muito poucos trabalharão com limites, trigonometria e derivadas. No entretanto, ao estudar e fazer exercícios dessas matérias todas, cada aluno está – sem disso se dar conta – a desenvolver uma maior capacidade de atenção. E com essa atenção virá uma cabeça mais rápida e arrumada. Os resultados nos testes e exames serão melhores mas, sobretudo, crescerá uma maior capacidade de focar, de discernir, mais inteligência prática, talvez até melhor oração. Tudo competências muito úteis e com muitíssimas aplicações. Emerge uma terceira espécie de ‘etnomatemática’: das suas múltiplas aplicações na vida.

Sabemos, porém, que poucos usarão equações e expressões algébricas na vida futura. Muito poucos trabalharão com limites, trigonometria e derivadas. No entretanto, ao estudar e fazer exercícios dessas matérias todas, cada aluno está – sem disso se dar conta – a desenvolver uma maior capacidade de atenção. E com essa atenção virá uma cabeça mais rápida e arrumada. Os resultados nos testes e exames serão melhores mas, sobretudo, crescerá uma maior capacidade de focar, de discernir, mais inteligência prática, talvez até melhor oração.

4. Sabe-se que a forma como se ensina e aprende matemática pode influenciar decisões políticas futuras (matéria relevante em ano de eleições!). Isto vale aliás para a aprendizagem em geral – quando é mais ou menos ‘democrática’ – mas tem especial relevância na matemática e nas disciplinas que implicam uma ‘construção’ temática muito gradual e progressiva (como as línguas estrangeiras). Há também uma relação estreita da matemática com a filosofia, bem para além do pequeno capítulo de lógica no início do 10° ano. Os números são entes matemáticos, subsistentes em sim mesmos, com paralelo com as essências e as ideias de Platão. O número ‘2’ não existe materialmente, mas existe. Há qualquer coisa de metafísico nos números. A matemática pode ajudar a pensar filosoficamente. A Bíblia também está cheia de matemática. As sagradas escrituras estão recheadas de números (há um livro com esse nome), de aplicações matemáticas à construção (livros do Êxodo e Levítico) e em quase todos os livros da biblioteca bíblica há simbologias numéricas (3, 7, 12, 40, 50, 70×7, 144000,…).

Na biologia humana não faltam números impressionantes. Cada pessoa é irrigada por milhares de quilómetros de vasos sanguíneos que produzem 15 milhões de glóbulos. Temos 650 músculos no nosso corpo. O nosso intestino mede entre 7 e 9 metros. A nível do sistema nervoso, sabe-se que a matemática promove muitas sinapses, novas ligações entre neurónios.
O ser humano tem uma ‘inteligência sentida’ (Q. Cabanas) em que a afetividade é aliada da razão. Conhecemos pela razão, em sentimento. Precisamos da emoção para que a razão conheça bem: também na matemática. Vários estudos revelam uma forte ligação entre as emoções e os números [2]. É notório que quando há problemas emocionais sérios a primeira disciplina a ‘cair’ é a matemática. As línguas e outras disciplinas – com mais letras – podem até ser um escape (“escrever ajuda!”) mas a matemática não é escape nenhum; ela precisa, para ‘funcionar’, que as emoções estejam minimamente em ordem. Por isso, a matemática pode ser um barómetro de saúde mental. Estas múltiplas relações da matemática com várias disciplinas e ciências configuram para mim uma quarta espécie de ‘etnomatemática’: a das inter-relações com outras áreas do saber.

Há coisas na vida muito mais importantes que a matemática.
Precisamos sempre de mediações e gosto de pensar na matemática como mediadora. As quatro ‘etnomatemáticas’ que explorei nestas linhas (mais ou menos fiéis ao prefixo ‘etno’!) procuram só ensaiar relações e mediações desta disciplina com outras áreas e lugares da vida, onde se encontram realidades muito mais essenciais. Talvez isto ajude a dar uma resposta à persistente pergunta “para que é que isto serve?”, e a ganhar outro gosto e sentido para aprender matemática.

 

NOTAS:

[1] “Reflexões sobre o bom uso dos estudos escolares em vista do Amor de Deus”. Simone Weil

[2] Por exemplo:
“A etnomatemática pela lógica do afeto”. 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.