Um passaporte para uma profissão?
Começaram as matrículas para o ano letivo 2018-2019. Muitos jovens de 15 anos estão agora a tomar decisões que lhes afetarão a vida toda. Têm de escolher um percurso académico que terá consequências sobre o seu futuro existencial e profissional. A encruzilhada volta a colocar-se àqueles que terminam estudos secundários e se candidatam a um curso superior.
Tenho acompanhado a determinação de alguns mas também as incertezas de muitos outros, e até a angústia das suas famílias: “Humanidades? Nem penses! Não tens emprego”; as famílias fazem coro com o psicólogo lá da escola: “Letras? Mas para que é que isso te serve?” Ou então ouvimos em tom resignado: “O meu filho vai para Letras… não se dá com a Matemática”.
É semelhante a atitude que pressinto quando me perguntam “Ainda há alunos em Estudos Clássicos?” – como se pasmassem diante de Dom Quixote a sobreviver ao admirável mundo novo.
Todos sentimos a perda de impacto social das humanidades. A nossa sociedade desprestigiou-as, como se o primeiro dever da educação fosse preparar cidadãos produtivos, profissionais de grandes rendimentos. Por vezes são os próprios alunos de humanidades que aceitam resignados a menorização do saber que escolheram, mimetizando o pensamento comum; e até professores e investigadores parecem menos crentes na relevância antropológica e cultural do saber que professam.
As humanidades são úteis?
De acordo com a ditadura do lucro e do utilitarismo que invadiu o nosso quotidiano, só é considerado útil aquilo que pode ser transformado em rendimento monetário ou outra forma de recompensa material quantificável. Mas serão mais felizes aqueles que se dedicam exclusivamente à acumulação de dinheiro e de poder?
É o momento de perguntar: por que se vai para a Universidade? Para ganhar dinheiro? Para ter um título ou um diploma? Para procurar a profissão mais bem remunerada? Porquê estudar artes, humanidades ou ciências sociais? As humanidades são úteis?
Se o útil é o que produz lucro, então as humanidades podem encerrar. Elas não só não dão rendimento a uma economia, como exigem custos elevados, hoje considerados supérfluos. Estudar latim ou sânscrito, ler Aristóteles ou Shakespeare, conhecer os filósofos, fazer ballet ou cantar polifonia antiga não aumenta as receitas de um país endividado.
Estudar para obter um título ou um diploma? Nem por isso. Já há quem consiga comprar um e outro, pois parece que o dinheiro tudo pode. Com o dinheiro tenta-se comprar o poder, os deputados, o sucesso e até a cultura.
O saber, pelo contrário, não pode comprar-se. Sem um percurso individual de aprendizagem, sem dedicação pessoal e interior (studium), nenhum grau académico dará saber algum. Nenhum diploma garante aquela metamorfose do espírito que só o studium alcança. O saber é um daqueles bens que escapa às leis do mercado. Eu posso partilhá-lo com os outros que nem ele se perde, nem eu fico mais pobre.
Perguntar a razão dos estudos humanísticos é perguntar a razão dos estudos sobre o ser humano, fundamento das humanidades e do humanismo. Todos sabemos que a felicidade não passa apenas pelo saber útil e o bem-estar material e tecnológico. Não precisamos só de dinheiro. Para se tornar mais humana, a humanidade tem mais necessidade do saber inútil do que do saber útil, escreveu Nucio Ordine, num manifesto que intitulou ousadamente A utilidade do inútil [1].
Para que servem então, as humanidades, a filosofia, as artes, e a literatura? A verdade é que elas não servem para nada. As Humanidades não nos tornam servos; tornam-nos livres. Livres para pensar na sociedade e para denunciar as iniquidades presentes nela.
Para isso, o ser humano tem necessidade de alimentar o espírito com o pensamento, a literatura, a filosofia, as artes, a música: essa é a finalidade dos estudos humanísticos. Se o não fizer, o espírito morre, ainda que haja uma mesa cheia para alimentar o corpo. Se colocarmos a dignidade apenas no peso do dinheiro e não no peso dos valores, deixamos morrer o espírito e o pensamento; matamos o livre-arbítrio. E é então que, vazios por dentro, estamos prontos a ser usados por outrem. E o vazio interior acaba preenchido por todo o género de ideias extremistas e daninhas, a começar pelo jihadismo. Não é isso o regresso à barbárie?
Aos 70 anos, o doente é tão digno de receber tratamento médico como aos 7 ou aos 30, quando a força do seu trabalho contribui diretamente para o PIB. Mas para que assim seja, é preciso salvar o ser humano da desertificação do espírito. Precisamos dos saberes que alimentam o espírito, que reivindicam o bem comum da humanidade, o respeito pela pessoa humana, o sentido de responsabilidade social, a solidariedade entre as gerações, a paz. Essa é a ‘inutilidade’ das Humanidades: tornar possível que continuemos a preferir o bom ao útil.
Foi essa a marca distintiva dos colégios de jesuítas, que durante cerca de dois séculos educaram a Europa moderna: um plano de estudos simultaneamente científico-filosófico e profundamente humanístico, atento às artes humaniores, às artes da palavra, à cultura, memória, às linguagens de representação e aos respetivos usos sociais e políticos.
Humanidades e democracia, ou como produzir gerações submissas
Soube de um livreiro português na Suíça que teimava em vender livros em língua portuguesa. Na parede da sua livraria tinha escrito: “Quanto mais ignorantes melhor para os governantes”. Ele conhecia bem a utilidade social das letras e das humanidades.
Na verdade, a insistência em submeter a educação ao lucro tem graves consequências para uma sociedade democrática: enfraquece a habilidade para criticar a autoridade, diminui a sensibilidade aos marginalizados, às minorias, aos grupos etnicamente diferentes; diminui a capacidade de lidar com a complexidade dos problemas globais… É a perda destas capacidades básicas que põe em risco a saúde das democracias.[2]
Porque são as Humanidades vitais para a educação dos cidadãos? Entre outras razões, porque elas desenvolvem faculdades como o pensamento crítico, não guiado apenas por sentimentos pessoais e impressões subjetivas, mas fundamentado em provas históricas e em razões científicas.
Para uma democracia sobreviver é preciso aprender a argumentar, a deliberar e a decidir. É preciso fazer opções não apenas ‘porque sim’, nem ‘porque me apetece’, nem sequer obrigados por qualquer espécie de autoridade, mas antes sabendo dar as razões (mais do que as opiniões) das opções.
O mundo do estudante é muito mais do que a sua casa, a sua escola, o seu grupo. Será o mundo global, muito além das fronteiras do seu país. Por isso a educação tem de lhe dar ferramentas que lhe permitam conhecer o outro, e sobretudo pensar acerca do outro. Para viver nessa rede de interdependências globais, é preciso conhecer as línguas e também a história das culturas, a economia global, as principais religiões do mundo – tudo aquilo que constitui o campo das humanidades.
Pelo contrário, a educação utilitarista desrespeita o lugar das artes e das humanidades. A implementação de programas de crescimento económico é mais eficaz se não houver quem denuncie a iniquidade; se o cidadão não souber defender-se intelectualmente; se for dócil e submisso. E há uma maneira de produzir gerações submissas: é não lhes dar pensamento crítico, é não as ensinar a exprimir-se, é privá-las da sua própria memória e identidade, impedi-las de conhecerem as suas razões de ser; é suprimir as artes e as humanidades.
Conclusão
Toda a gente sabe que as artes têm um enorme poder para ultrapassar a exclusão social e promover as democracias. São muitas as experiências que provam a capacidade da música para vencer barreiras sociais. Mas quantas foram as escolas que encerraram o ensino da música e até das línguas?
Estudar humanidades não é, provavelmente, adquirir o passaporte para uma profissão previsível e imediata, mas é criar as condições para o ajustamento ao mercado de trabalho sempre em mudança. É sobretudo cuidar da comum humanidade a que todos pertencemos, alimentar-lhe o espírito, preservá-la da instrumentalização que a fere e tornar possível a vida em democracia.
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[1] L’utilità dell’inutile (Bompiani, Milão 2013) foi traduzido em 19 línguas, em 26 países, incluindo em Portugal (Kalandraka Editora, 2016).
[2] Marta C. Nussbaum, Not for Profit. Why Democracy needs Humanities (Princeton University Press, 2010).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.