É o voluntariado uma revolução ou “uma treta”?

Entre o Domingo de Páscoa e o 25 de abril vale a pena pensar no voluntariado como a engenharia da justiça no amor.

Mais ou menos por esta altura, em 2016, uma bem conhecida figura da política portuguesa afirmava convicta numa entrevista que o “trabalho voluntário é uma treta. Se é trabalho, tem que ter contrato. Voluntariado é o que as pessoas podem fazer depois de terem um contrato de 35 horas semanais, quando se querem dedicar a outra atividade”[1]. Pretendia denunciar abusos, esquemas ilícitos, enganosos e condenáveis, o facto de haver pessoas a trabalhar sem a devida remuneração. Mas saiu-lhe mal. Nesse mesmo dia, a 17 de abril, reproduziu a entrevista tal e qual na sua página do Facebook, com um pequeno comentário introdutório à publicação. Transcrevo parte dessa introdução, porque ajuda na reflexão que quero fazer: “Voluntariado não é trabalho voluntário”[2]. Segundo esta deputada, voluntariado é o que as pessoas podem fazer depois de terem um contrato. Afirmação no mínimo ambígua e errónea.

Voluntariado é uma dessas palavras que não se podem reduzir ao tamanho e medida de uma ideia, seja de quem for. Nunca esta palavra poderia, ou poderá, ficar subjugada às ideias políticas, e quantas vezes redutoras, das relações sociais que nos devem regular.

Voluntariado só depois de um contrato de 35 horas.

É assustador imaginar um mundo assim! Encarcerar a natural dimensão de solidariedade a um pseudo “código” de Estado que não considera o melhor da condição humana nem o melhor das relações sociais. Que aberrante mundo novo seria! Num único golpe, numa única machadada, esta forma de entender a vida torturaria a compaixão, a generosidade, a solidariedade inerentes à dignidade humana e à vontade de lutar pela justiça, acabando por criar uma sociedade indiferente e antissocial.

Mas, felizmente, esse mundo não existe. Se existisse, as crises humanitárias, desde Pedrógão a Moçambique, passando pela Venezuela, pelo Yemen e pelo vizinho do lado que ficou desempregado, seriam calamidades vividas no gelo daquela solidão humana que sabe matar como ninguém. Se existisse, a defesa de direitos humanos, iguais para todos, em todas as partes do mundo, em todas as camadas sociais e na diversidade dos grupos humanos, ficaria sem esse ativo objetor de consciência que é a sociedade civil.

Esse mundo não existe e se existisse estaria destinado ao fracasso. O ser humano, diante do sofrimento e da necessidade, altera automaticamente a relação direito e dever para dever e direito.

O voluntariado é uma força pascal no meio de um mundo de, e em, paixão.  O voluntariado é uma força de liberdade enraizada na gratuidade. O voluntariado é uma força de conquista que quer repor a dignidade onde ela se ensombra. O voluntariado é uma força criativa que anula o impossível. O voluntariado acaba por ser a saúde de uma sociedade.

Nem todos somos voluntários. … mas, e se fôssemos? O voluntariado é trabalho, não é uma treta nem tem como pré-condição 35 horas semanais pagas. Não se substitui ao Estado nem se define pelos impostos. O voluntariado vem da fé uns nos outros, capaz de transformar o que é morte em vida. O voluntariado é a engenharia da justiça no amor que quer tomar parte na libertação da pessoa e da terra, seja qual for o sofrimento ou injustiça a que esteja subjugada.

Boa Páscoa em Liberdade.

[1] https://www.dn.pt/portugal/interior/catarina-martins-trabalho-voluntario-e-uma-treta-5130633.html
[2] https://www.facebook.com/catarinamartinsBE/posts/voluntariado-n%C3%A3o-%C3%A9-trabalho-volunt%C3%A1rio-trabalho-volunt%C3%A1rio-%C3%A9-um-abuso-que-a-dire/1363925590301097/

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.