Direitos ou responsabilidade?

O drama provocado pelo incêndio em Santo Tirso deu projeção à crescente preocupação com o bem-estar e direitos dos animais, e convida-nos a a aprofundar a questão, resistindo a abordagens simplistas ou sensacionalistas.

No passado dia 18 de julho, um incêndio florestal em Santo Tirso deixou o país em sobressalto – desta vez – não pela quantidade de área ardida, mas por causa da destruição pelo fogo de dois canis não licenciados, levando à morte de várias dezenas de animais de companhia. O dramatismo da situação foi acrescido pela frustração de um grupo grande de ativistas e voluntários que foram impedidos pelas autoridades de aceder ao espaço na esperança de resgatar os animais. O caso provocou um sobressalto popular e mediático, levando a trocas de explicações e acusações entre autarquia, forças de segurança e proteção civil, órgãos da administração central e regional, conduzindo mesmo a um debate na Assembleia da República, pela mão do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN).

Esta triste “novidade” vem inserir-se na tendência de uma crescente preocupação pelas questões animais, na sociedade portuguesa, de que o crescimento eleitoral do PAN é clara expressão. O drama objetivo da perda de 73 vidas animais (números oficiais), animais estes que se encontravam já a viver em condições comprovadamente deploráveis, merece a justa indignação da opinião pública. Em termos gerais, é certamente positiva a crescente sensibilidade, por parte da sociedade, perante o sofrimento dos animais e a correspondente luta contra comportamentos de violência gratuita e crueldade. Os animais de companhia não podem ser tratados como objetos inanimados, nem como mera “propriedade” de que cada um pode dispor a seu belo prazer.

No caso do incêndio de Santo Tirso, não está claro se a atuação das autoridades, ao impedirem o acesso ao canil, assentou na defesa da propriedade privada – como apontado por algumas testemunhas – ou se resultou da (normal) avaliação do risco envolvido e das possibilidades efetivas de resgate dos animais que ainda se encontravam no lugar. O inquérito oficial tirará as suas conclusões e, entretanto, não me parece, de todo, adequado condenar na praça pública aqueles cuja missão é, antes de mais, preservar vidas humanas. Esta tensão entre o ativismo frustrado dos populares e a atitude “conservadora” das autoridades convida-nos a aprofundar a questão do bem-estar e dos chamados direitos dos animais, resistindo a abordagens simplistas ou sensacionalistas.

Parece-me importante redimensionar a “tragédia” dos animais mortos em Santo Tirso no contexto da “tragédia maior” dos incêndios que, ao destruírem todos os anos milhares de hectares de floresta, são responsáveis pela morte de inúmeros animais selvagens (e por vezes também agrícolas), apanhados pelo fogo ou através da destruição do seu habitat natural, sem falar da lesão que os fogos representam para os ecossistemas no seu todo.

Em primeiro lugar, parece-me importante redimensionar a “tragédia” dos animais mortos em Santo Tirso no contexto da “tragédia maior” dos incêndios que, ao destruírem todos os anos milhares de hectares de floresta, são responsáveis pela morte de inúmeros animais selvagens (e por vezes também agrícolas), apanhados pelo fogo ou através da destruição do seu habitat natural, sem falar da lesão que os fogos representam para os ecossistemas no seu todo. Se é louvável uma crescente preocupação com a vida animal, a exclusiva atenção aos animais de companhia (como indica a inclusão de um título próprio, no código penal) indicia uma postura ideológica e superficial, na qual o “animal” é visto apenas em contexto urbano, contribuindo para desligar o “natural” do “artificial”. A preocupação pelo mundo animal pode, pelo contrário, constituir uma ajuda na redescoberta da ligação profunda do ser humano com a natureza, que a vida citadina marcada pela “pressa” e pela invasão da técnica e da tecnologia tende a fazer-nos esquecer.

Por outro lado, a atual realidade dos canis, públicos, privados, legais ou ilegais, é resultado da atuação dos poderes públicos e da adoção de determinadas políticas, como o fim do abate dos animais decretado pelo Parlamento, medida “populista” que não foi acompanhada de um significativo investimento na capacidade de recolher e cuidar dos animais abandonados. A consequente situação de rutura das estruturas de acolhimento põe em evidência a hipocrisia de pretender criar “direitos dos animais” sem que ninguém assuma os correspondentes deveres e encargos. A proteção da vida animal, qualquer que ela seja, tem de ser encarada, antes de mais, desde a perspetiva da responsabilidade, tanto por parte das competentes autoridades como dos particulares, a começar pelos próprios donos. A “solução” para as dificuldades que enfrentam os canis (e a própria proliferação de canis ilegais que acabam por “dar jeito” às administrações públicas) tem de passar pelo combate efetivo ao abandono, tanto por via da aplicação das sanções administrativas e penais, quer através da prevenção e sensibilização.

A questão do bem-estar animal levanta numerosas questões que, ultimamente, remetem para a relação entre o ser humano e a natureza, a qual não pode deixar de ser pensada em termos integrais, na linha daquilo que o Papa Francisco advoga na Laudato Si’. Paradoxalmente, a absolutização dos “direitos dos animais” (de companhia) – para a salvaguarda dos quais seria legítimo pôr em perigo pessoas e bens – tende a uma equiparação antropomórfica que não faz jus ao papel e à responsabilidade de “cuidador” do homem, chamado a ser “melhor amigo” daqueles seres que, não lhe sendo iguais, estão confiados à sua responsabilidade.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.