Dentro de pouco mais de um ano a Companhia de Jesus celebrará o quinquagésimo aniversário de uma graça especial que define a missão dos jesuítas para o nosso tempo. O decreto (dec.) 4 da Congregação Geral (CG) 32, realizada em 1974-1975, diz claramente qual deve ser a missão da Companhia para o nosso tempo: “A nossa missão nos dias de hoje: diaconia da fé e promoção da justiça”. Em continuidade com o passado, deste decreto decorre, inequivocamente, para a Companhia de Jesus, um modo de estar no mundo eminentemente profético.
A espiritualidade jesuítica expressa-se, geralmente, por binómios. Nestes binómios, os dois polos são indissociáveis e complementam-se. Neste caso, os dois polos identificam-se com a fé e a justiça. No âmbito da espiritualidade jesuítica o binómio mais conhecido é o da “contemplação na ação”. Em rigor, não é da autoria de Inácio de Loiola (1491-1556), mas de um dos seus companheiros, Jerónimo Nadal (1507-1580). Na Companhia de Jesus a contemplação e a ação não são consideradas estanques nem vivem de costas voltadas uma para a outra. O desafio é que a própria ação seja executada numa atitude contemplativa, isto é, que a realidade quotidiana seja experimentada como atravessada pelo divino. O intuito é unificar oração e vida.
Na Companhia de Jesus a contemplação e a ação não são consideradas estanques nem vivem de costas voltadas uma para a outra. O desafio é que a própria ação seja executada numa atitude contemplativa, isto é, que a realidade quotidiana seja experimentada como atravessada pelo divino. O intuito é unificar oração e vida.
A fé e a justiça constituem duas dimensões indissociáveis de um mesmo e único mandamento do amor (Lc 12, 28-34). A fé pressupõe que se seja sensível quer às questões da justiça, com que se é confrontado na vida quotidiana, quer ainda no que respeita à justiça universal, considerando as estruturas de pecado de um mundo globalizado.
A sensibilidade para as questões sociais não é, como sabemos, uma novidade ou aquisição recente, pois já a encontramos nos profetas do Antigo Testamento e no modo de viver do próprio Jesus. No entanto, este dec. 4 sobre a fé e a justiça, marca profundamente a missão que a Companhia de Jesus, como parte integrante da Igreja, é chamada a desempenhar hoje no meio do mundo. A própria Fórmula do Instituto (1550), com base na qual Inácio redigiu as Constituições da Companhia de Jesus, atesta que os dois polos indissociáveis da fé e da justiça já recebem um grande destaque no carisma original. Contudo, a conjuntura do tempo presente veio dar à perspetiva unificada da fé e da justiça uma extrema urgência.
A 14 de novembro de 1980, Pedro Arrupe, Padre Geral da Companhia de Jesus, fundou o Jesuit Refugee Service (JRS). Esta obra está presente em mais de 50 países e a sua missão é acompanhar, servir e defender os direitos dos refugiados e das pessoas deslocadas à força. Esta obra foi fundada no último ano do generalato de Pedro Arrupe, já que a 7 de agosto de 1981 Pedro Arrupe sofreu um grave derrame cerebral, do qual não recuperou. Por um lado, o JRS é uma obra emblemática, dando visibilidade à pertinência do dec. 4 da CG 32. Por outro lado, é uma obra profética, no sentido em que desde então o drama dos refugiados agravou-se, tornando-se um dos problemas mais gritantes do nosso tempo (cf. John O’ Malley SJ, Os jesuítas. Uma história desde Inácio ao presente).
A CG 33 (1983), no dec. 1, explicita que, quando nos referimos à diaconia da fé e à promoção da justiça, temos em vista a “justiça do Evangelho que é a encarnação do amor e da misericórdia salvífica de Deus” (nº 32).
A CG 34 (1995) considera que o dec. 4 da CG 32 é “uma graça especial concedida à Companhia” (CG 34, dec. 2, nº 7). Consequentemente confirma a missão atual da Companhia. A respeito do decreto “A nossa missão nos dias de hoje: diaconia da fé e promoção da justiça”, a CG 34 distingue por um lado a “finalidade” da nossa missão: “o serviço da fé” e, por outro lado, o “princípio integrador”: “a fé dirigida à justiça do Reino” (cf. CG 34, dec. 2, nº 14-15; CG 35, dec. 3, nº 2). A diaconia da fé e promoção da justiça constitui o tronco comum da missão. Mas, a partir daqui, desenvolvem-se dois ramos que dizem respeito à relação da fé com as diferentes culturas e à relação da fé com o diálogo inter-religioso. Trata-se de uma perspetiva integrada da fé, justiça, culturas e grandes religiões: “Não pode haver um serviço da fé sem promoção da justiça, sem penetração das culturas, sem abertura a outras experiências religiosas. Não pode haver promoção da justiça, sem comunicar a fé, sem transformar as culturas, sem colaborar com outras tradições” (cf. CG 34, dec. 2, nº 14-21; CG 35, dec. 3, nº 3).
“Não pode haver um serviço da fé sem promoção da justiça, sem penetração das culturas, sem abertura a outras experiências religiosas. Não pode haver promoção da justiça, sem comunicar a fé, sem transformar as culturas, sem colaborar com outras tradições” (cf. CG 34, dec. 2, nº 14-21; CG 35, dec. 3, nº 3).
Nos documentos da CG 34 é também significativa a perspetiva integrada da justiça com a ecologia (dec. 3, nº 9). Uma ordem mundial que contemple um maior desenvolvimento de todos os povos pressupõe um maior respeito pelo ambiente e vice-versa. Esta havia sido a grande conclusão do estudo elaborado no âmbito das Nações Unidas, pela Comissão Mundial do Ambiente e do Desenvolvimento, e que tem por título O nosso futuro comum (1987).
A CG 35 (2008), no dec. 3, intitulado “Desafios para a nossa missão, hoje”, retoma uma perspetiva integrada da justiça e da ecologia, acentuando também uma perspetiva integrada da reconciliação: “a reconciliação com Deus, a reconciliação da humanidade e a reconciliação com a criação” (CG 35, dec. 3, nº 18-36; CG 36, dec. 2, nº 21-30). Não deixa de ser significativo o facto de a reconciliação dizer respeito não só à relação dos seres humanos com Deus e à relação dos seres humanos entre si, mas também à relação dos seres humanos com a criação. Consequentemente, o pecado também é fruto da destruição ou desrespeito da e para com a criação. Na perspetiva da revelação o ser humano não é proprietário mas administrador da criação e, consequentemente, é chamado a prestar contas.
Não deixa de ser significativo o facto de a reconciliação dizer respeito não só à relação dos seres humanos com Deus e à relação dos seres humanos entre si, mas também à relação dos seres humanos com a criação. Consequentemente, o pecado também é fruto da destruição ou desrespeito da e para com a criação. Na perspetiva da revelação o ser humano não é proprietário mas administrador da criação e, consequentemente, é chamado a prestar contas.
Mais recentemente, a CG 36 (2016) aprovou o dec. 2: “Companheiros numa missão de reconciliação e justiça”. Já o dec. 4 da CG 32 (1975) havia esboçado esta perspetiva: “A missão da Companhia de Jesus, hoje, é o serviço da fé, do qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta enquanto faz parte da reconciliação dos homens, exigida pela reconciliação dos mesmos com Deus” (CG 32, dec 4, nº 2). Este decreto afirma ainda que, por um lado, se os Exercícios Espirituais não dão mais fruto, é porque não nos deixamos inflamar pela misericórdia de Cristo, de maneira a tornarmo-nos ministros da misericórdia (nº 18-19) e, por outro, que “no meio das dificuldades e dos desafios do nosso tempo, Deus não cessa de trabalhar pela salvação de todos, de toda a criação” (nº 3 e 40).
As “Preferências Apostólicas Universais” (PAU) da Companhia de Jesus para o decénio 2019-2029 propõem que nos empenhemos mais em cultivar atitudes do que investir em áreas de apostolado concretas. Os verbos destas PAU, mais que verbos performativos, constituem antes atitudes que interiorizam e integram a fé e a justiça: 1. mostrar o caminho para Deus através dos Exercícios Espirituais e do discernimento; 2. caminhar junto aos pobres, os descartados do mundo, os violados na sua dignidade numa missão de reconciliação e justiça; 3. acompanhar os jovens na criação de um futuro promissor; 4. colaborar no cuidado da Casa Comum.
Celebraremos, dentro de pouco mais de um ano, o quinquagésimo aniversário do decreto “A nossa missão nos dias de hoje: diaconia da fé e promoção da justiça”. Na altura foi polémico e houve setores da Igreja que foram muito críticos. Hoje é óbvia a sua pertinência e a consciência de como, de facto, é “uma graça especial”. Este decreto decorre da Doutrina Social da Igreja, que lançou as suas bases com a encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII, e do Concílio Vaticano II, em particular a constituição Gaudium et Spes (1965). É significativo como o caminho percorrido desde então, passando no atual pontificado pelo documento programático Evangelli Gaudium (2013), vai culminar nas duas únicas encíclicas do Papa Francisco: Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum (2015) e Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social (2020).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.