Cinco alunos e uma professora conversam numa sala. Têm como plano reunir-se de quinze em quinze dias para discutir temas que os próprios miúdos escolhem, num formato próximo de uma tertúlia. Sendo este o primeiro encontro, ainda não há tema definido. A proposta foi então escolher alguns desenhos do Quino (o famoso cartoonista argentino, criador da Mafalda e de muitos outros livros de sátira social), e discutir a partir daí. Rapidamente a conversa envereda pelas questões da justiça social, mas com uma mão cheia de preconceitos à mistura. A ideia que vai atonando é que aqueles a quem a vida corre mal não mereciam que lhes tivesse corrido bem. Estão no desemprego ou a receber o rendimento Social de Inserção (RSI) porque não trabalharam, não se esforçaram, fizeram más opções. Quem tem mérito, consegue tudo. Olhem o Ronaldo, que era um pobre coitado num bairro perdido da Madeira e agora nada em ouro, graças ao seu talento.
A professora sou eu, e respiro fundo. Sei bem o quão errados estes miúdos estão, mas não lhes posso fazer frente de forma demasiado insistente à partida, senão ficam cheios de anticorpos e fecham-se ao diálogo. A incapacidade de questionar o status quo é uma barreira que eles já têm instalada, apesar dos seus 13 anos. Bem se queixava Dom Hélder Câmara: “Dou uma esmola ao pobre, chamam-me santo. Pergunto porque é que o pobre é pobre, e chamam-me comunista”.
Começo por lhes mostrar que tudo começa na infância, e o sucesso escolar, infelizmente, é gritantemente proporcional ao nível de estudos dos pais. Dados de 2016 revelam que 14% dos alunos filhos de mães sem habilitações têm percursos de sucesso, em contraste com 29% dos filhos de mães com o 2º ciclo e 71% quando as mães têm curso superior. A correlação também é inequívoca entre os resultados escolares e as condições económicas. Aliás, Portugal é o país da Europa onde a relação entre as reprovações e o contexto social é maior: 87% dos alunos que chumbam vêm de famílias de baixo estatuto socioeconómico e cultural. Isto compreende-se facilmente: um menino de um bairro social, que cresça num ambiente destruturado, sem figuras parentais que valorizem a escola, rodeado de pessoas que falam mal, que lhe incutem modelos de comportamento nas margens da ilegalidade, poderá alguma vez competir com crianças que cresceram em casas cheias de cultura, recursos pedagógicos, experiências? Uma mãe que trabalhe em dois empregos não qualificados, saindo de casa às 7h da manhã e regressando às 8h da noite, vendo-se obrigada a deixar os filhos na rua em autogestão durante o dia, pode alguma vez acompanhar o seu crescimento, verificar os seus trabalhos de casa, motivá-los com a garantia de que o seu esforço será recompensado?
Dificilmente. E ao longo de 2017 tivemos acesso a mais dados a confirmar isto mesmo. Por exemplo, os alunos do 7º ano de nível económico baixo têm o dobro da probabilidade de ter negativa a Matemática. E enquanto em Loures uma criança em cada duas estuda numa escola com graves problemas de insucesso escolar, no concelho de Cascais já só será uma em cada oito crianças.
Não quero com isto sugerir que uma criança dotada proveniente de um ambiente problemático não possa singrar – é evidente que há muitos casos de sucesso que nos deixam esperança num certo grau de mobilidade social na sociedade portuguesa e europeia em geral. Mas preocupa-me a desigualdade de oportunidades entre os medianos, os que não brilham à partida, aqueles que precisam de motivação e de acompanhamento. Para esses, que são a maioria, o contexto é tudo, pode ser a diferença entre aprender e não aprender. Entre conseguir ultrapassar as dificuldades, descobrir os seus pontos fortes e eventualmente chegar à universidade e ao mundo do trabalho, e, ao invés, ir colecionando frustrações, falta de confiança, reprovações, e acabar por abandonar a escola.
Como há muito poucos Cristianos Ronaldos, os mecanismos de justiça social não podem ser tímidos. Como afirma José Manuel Otero Novas, Ministro da Educação em Espanha em 1979-80, “a justiça exige que a escola seja o instrumento para a igualdade de oportunidades (…). Determinadas pessoas precisam de ser ‘ajudadas’ para se colocarem no mesmo ponto de partida de outras. Daí que sejam necessárias políticas compensatórias” (2003).
Tudo começa na escola mas nem tudo termina nela. Segundo um estudo recente sobre desigualdade e pobreza em Portugal, o nosso país é um dos mais desiguais da União Europeia, seja qual for o indicador utilizado para o medir. Apesar de, nas últimas décadas, o rendimento auferido pelos setores mais pobres da população ter aumentado, a desigualdade salarial não parou de aumentar, o que revela uma distribuição da riqueza injusta e preocupante. Não discuto que seja justo que um gestor de talento ímpar ganhe muito bem e muito melhor que um trabalhador não qualificado da sua empresa. Discuto somente uma questão de grau. É justo que a senhora que limpa a sua casa-de-banho ganhe 80 vezes menos do que ele? Não pode ser considerado justo um sistema no qual essa senhora, devido ao baixo salário e à necessidade de trabalhar horas extraordinárias, não consiga acompanhar os filhos de forma a garantir que, no futuro, eles estarão mais perto do gestor do que ela está agora. Um sistema justo terá de garantir que a circunstância aleatória de se ter nascido num certo meio e se carregar nos ombros uma certa história não será mais determinante para o nosso sucesso do que o esforço do nosso empenho. E para isso é preciso igualdade de oportunidades.
É imperioso que nos questionemos: quão perto de uma sociedade justa ideal está o mundo em que vivemos? Qual é o nosso papel na correção dos mecanismos criadores de desigualdade?
Faço uma pausa para deixar o impacto da pergunta ecoar na sala quase vazia e silenciosamente espero que a tertúlia tenha despertado alguma coisa nestes alunos. Deixo-os com um apelo da Doutrina Social da Igreja: “A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva (…) da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão. (…) Se, efetivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a justiça não mostra a sua eficácia na ação pela justiça no mundo, muito dificilmente ela será aceitável para os homens do nosso tempo” (Justiça no Mundo, 1971). Hoje, quase 50 anos depois, este repto permanece tão certeiro como nunca.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.