A nova imigração em Portugal é feita de gente com quem convivemos há séculos. Quando olhamos à nossa volta numa rua de Lisboa percebemos que somos hoje muito mais diversos do que éramos há algumas décadas, mas, provavelmente também mais próximos do que seríamos no século XVI (como podemos ver na obra Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa. de Autor anónimo, c. 1570-1590). Quando em pleno século XV os portugueses se lançaram numa epopeia de descoberta dos mundos para si desconhecidos, a sensação de estranheza que despertaram nos povos que iam encontrando ao longo do caminho era um espelho da que despoletavam nos que com eles contactavam. Quando, nos séculos XIV e XV, os portugueses atravessaram o Mar Algarvio em direção à conquista do Norte de África não só enfrentaram batalhas, como experimentaram (novos) encontros culturais com civilizações até então simultaneamente próximas e distantes. Esse período marcou o início, na história portuguesa, de dois fluxos migratórios distintos, consolidando a diferenciação entre colonos, (movidos por iniciativas estatais para se estabelecerem em territórios ultramarinos), e emigrantes, (que partiam por vontade própria em busca de novas oportunidades). Ou seja, pelo menos desde os séculos XIV e XV que, enquanto portugueses, somos parte de um grupo maior: os migrantes globais.
Quase seis séculos depois de iniciarmos este percurso de sairmos para nos encontrarmos, temos certamente consciência de que encontrámos o mundo e o mundo nos encontrou. Temos também consciência da diversidade de culturas e de formas de exteriorização das identidades locais que, à vez, nos fizeram sorrir, ter medo, ou até ser agressivos, quando com elas nos confrontámos. Mais de seis séculos depois o que levámos e o que trouxemos faz parte de nós. Palavras como banzé, geringonça ou manha chegaram-nos via África. Soja ou biombo vieram do Japão. Levámos outras mundo fora. Palavras como zebra, mosquito ou banana entre muitas outras. Quando, ao longo dos séculos, nos sentámos para almoçar num boteco qualquer do mundo levámos receitas, trouxemos petiscos. Levámos vinho, trouxemos cachaça, café ou chá. Contámos as nossas histórias escutámos as histórias de todos os outros. Levámos peixinhos da horta que se transformaram em tempura no Japão graças a António da Mota, Francisco Zeimoto e (talvez) António Peixoto. Trouxemos uma diversidade de temperos como coentro, pimenta-do-reino, açafrão, piri-piri ou canela. Levámos a vinha d’alhos (vindaloo) para a Índia, o chá ou a sobremesa para Inglaterra, inventámos a francesinha a partir de uma experiência de um emigrante em França, levámos bolinhos de bacalhau mundo fora. Até a reconhecida e apreciada feijoada brasileira tem as suas raízes na feijoada portuguesa. Mas a formação da nossa identidade não parou.
Na volta das caravelas contemporâneas (a que chamamos aviões) vêm agora novos produtos, novos sabores, novas palavras. Os hospedeiros são os imigrantes que hoje nos acompanham quando passeamos, almoçamos ou conversamos numa soalheira esplanada junto ao Douro ou ao Tejo. Quando um indiano, um nepalês, um brasileiro ou um angolano passa por nós na rua devíamos ter sempre a sensação de estar perante um primo que chegou para nos visitar. A probabilidade de um antepassado nosso e de um antepassado dele já se terem cruzado num outro tempo numa outra rua é enorme. Não apenas os nossos genes nos dizem quem somos, uma mistura de todo um passado migratório, como as nossas memórias coletivas nos devolvem (ou deviam devolver) aquilo que individualmente já esquecemos. Se hoje temos mais de 2,5 milhões de portugueses espalhados pelo mundo é porque aceitamos que o mundo é a nossa casa comum (embora estes emigrantes sejam “os” estrangeiros lá onde vivem).
Ao diabolizarmos os imigrantes, que hoje vivem entre nós, estamos a desprezar a nossa identidade global, o passado com que amalgamámos a nossa cultura, a cultura com que construímos a nossa língua, a língua através da qual erigimos a nossa fé, a humanidade que foi a base do nosso humanismo.
Se ao passearmos pela (hoje) famosa Rua do Benformoso reconhecermos o mundo que já visitámos, onde tivemos emigrantes, onde houve, em tempos que já lá vão, colonos portugueses é porque o mundo hoje está (de novo) aqui. A Rua Nova dos Mercadores e a Rua do Benformoso estão separadas por 500 voltas ao Sol, mas não as separa a nossa memória de um passado comum. Ao diabolizarmos os imigrantes, que hoje vivem entre nós, estamos a desprezar a nossa identidade global, o passado com que amalgamámos a nossa cultura, a cultura com que construímos a nossa língua, a língua através da qual erigimos a nossa fé, a humanidade que foi a base do nosso humanismo. Sem imigrantes e emigrantes esta língua em que vos falo, estes sabores e cheiros que partilhamos, estas memórias que celebramos, eram apenas posts efémeros numa qualquer rede social e, depois de um like, desapareceriam no vácuo sem retorno nem regresso. Num tempo em que a imigração parece um problema para alguns, façamos da memória um dever de gratidão para com os imigrantes e os emigrantes. Todos somos migrantes ou filhos de migrantes. Melhor, todos somos migrantes e filhos de migrantes. A universalidade do apelo inclusivo do Papa Francisco aplica-se também aqui. Todos! Todos! Todos! Num momento em que a política faz uso de linhas que nos separam ousemos dar a mão a quem acolhemos. Se o mundo nos entra pela fronteira é porque somos há séculos cidadãos do mundo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.