Acabámos de saber que no seu Democracy Index 2020 report, o The Economist Intelligence Unit fez Portugal descer da 22.ª para a 26.ª posição (em 167 países), e passar de full democracy para flawed democracy. O resultado em si, apesar de desfavorável, não deve ser dramatizado: neste ranking, temos oscilado nos anos recentes entre full e flawed democracy, por exemplo em resultado da crise financeira, do pedido de assistência externa, e das medidas de austeridade draconianas que foram necessárias. Contudo, também não deve ser desvalorizado. Por várias razões.
Primeiro, porque desta vez a mudança de posição (4 lugares) é muito substancial.
Segundo, porque não se trata de uma idiossincracia deste ranking, mas é um resultado consistente com os de índices semelhantes (e há vários). Por exemplo, no Human Freedom Index 2020 Report, co-publicado pelos Cato Institute, Fraser Institute e Liberales Institut, Portugal desceu da 23.ª para a 26.ª posição (em 162 países) de 2017 para 2018 (o ano mais recente disponível). A descida neste índice – que considera inúmeros indicadores de liberdade pessoal, civil e económica – deveu-se, naquele ano, a uma substancial perda de liberdade pessoal relacionada com a deterioração da justiça e com a redução da autonomia dos partidos da oposição.
Terceiro, porque as causas apontadas pelo The Economist Intelligence Unit para a deterioração da democracia portuguesa em 2020 são certeiras e sintomáticas do clima pouco democrático que se vive neste momento em Portugal. O relatório explicita causas como a ilegalidade e natureza abusiva de medidas de combate à pandemia, a redução da periodicidade dos debates com o governo no Parlamento, e a falta de transparência no processo de substituição do Presidente do Tribunal de Contas.
O relatório explicita causas como a ilegalidade e natureza abusiva de medidas de combate à pandemia, a redução da periodicidade dos debates com o governo no Parlamento, e a falta de transparência no processo de substituição do Presidente do Tribunal de Contas.
É claro que o que verdadeiramente interessa é a realidade, e não rankings e relatórios. Infelizmente, olhando para a vida do país nos tempos recentes, facilmente se detetam muitas mais ameaças à democracia: a divergirem da realidade, eu diria que estes relatórios e rankings subavaliam o diagnóstico de degradação da democracia.
Não faltam artigos de opinião sobre tantos casos, e não cabe aqui qualquer enumeração exaustiva. Alguns exemplos apenas: conflitos de interesse na nomeação de titulares de cargos políticos ou de política económica; falta de independência na designação de titulares de posições de topo na magistratura; atrasos inexplicáveis em processos judiciais de elevada relevância envolvendo políticos e pessoas próximas do poder político; nomeação de políticos, frequentemente sem competências adequadas, para inúmeros cargos técnicos, alargando teias de interesse político-partidário em posições estratégicas do estado; conluio entre gestores e políticos em empresas participadas pelo Estado; injeção não adequadamente fundamentada de fundos públicos em empresas próximas do poder central; desrespeito dos direitos humanos em serviços de estrangeiros e fronteiras; falsificação de curriculum vitae de candidatos a cargos políticos e da magistratura, incluindo a nível internacional; etc, etc…
Especialmente grave é o aparente sentimento de impunidade com que o poder político tem reagido quando estes casos são tornados públicos, escondendo-se em subterfúgios e fugindo à assunção de responsabilidades.
A fragilidade da nossa democracia ficou ainda mais evidente na gestão da pandemia. Não têm faltado trapalhadas, erros, ineficiências. Também aí a reação típica do poder político tem sido tentar iludir a opinião pública, mais do que resolver os problemas substantivos em causa. E chegou-se mesmo ao ponto de acusar de falta de patriotismo quem comentava, criticava e sugeria alternativas.
Alguns exemplos apenas: uma sucessão de ordens e contra-ordens sanitárias – que, como não podia deixar de ser, resultaram em desordem; decisões de confinamento incompreensíveis: iníquas, ineficazes, e de implementação e verificação impossíveis; uma sucessão de afirmações demagógicas – prometendo o que já estava decidido fazer-se, ou o que já se sabia impossível de fazer; uma sucessão de promessas incumpridas – especialmente graves quando respeitaram ao sistema de saúde e à resposta sanitária, e à resposta do sistema educativo; e, agora mais recentemente, uma óbvia falta de rumo, ineficiências e iniquidades no processo da vacinação; etc, etc…
Vivemos, hoje, um défice de liberdade e democracia. E o que significa isto para o futuro? Que sinais estamos a dar às gerações futuras? Que condições de crescimento e desenvolvimento lhes oferecemos?
Num país em que a classe política é cada vez menos competente e mais despudorada, enredada num círculo vicioso de desvalorização da profissão política e de atração dos menos competentes e mais corruptos.
Os nossos jovens nasceram e estão a crescer num país pobre e estagnado, que poucas oportunidades lhes dá de construírem uma vida com trabalho e remuneração digna. Num país em que o Estado sabe tributar mas não sabe servir o cidadão – até porque está esvaziado de recursos competentes, após décadas de desvalorização das suas carreiras profissionais. Num país em que a classe política é cada vez menos competente e mais despudorada, enredada num círculo vicioso de desvalorização da profissão política e de atração dos menos competentes e mais corruptos. Num país em que existe cada vez menos meritocracia e em que subir na vida depende cada vez mais de afinidades político-partidárias. Num país em que as condições de contexto (económicas, fiscais, judiciais, etc) são cada vez menos favoráveis à iniciativa privada. Num país em que a comunicação social vive de epifenómenos e, frequentemente, ao serviço do poder político, não cumprindo a sua missão de quarto poder.
Mais globalmente, os nossos jovens estão a crescer num mundo com falta de referências; um mundo em mutação acelerada de valores, em que tudo parece relativo; um mundo em que lhes é sistematicamente dito que a lei substitui a ética e a moral; um mundo em que é difícil encontrar sentido de futuro em vozes com autoridade.
Nesta era da sedução e do imediatismo, os jovens seguem menos os grandes mestres (que, em geral, não lêem) do que os influencers que dominam as redes sociais. E estes são, na prática, outros jovens, em geral incultos e de fraca estrutura moral, frequentemente ao serviço de interesses escondidos. Os nossos jovens são, em geral, mais sensíveis a soundbites, mesmo se infundados, do que a factos e argumentos.
Neste contexto nacional e global, como podem os jovens portugueses ter confiança e esperança? Não podem, digo eu: pelo contrário, vivem cada vez mais em desesperança e até desespero. São, por isso, terreno fértil para populismos, radicalismos, totalitarismos. O cenário político português começou já, aliás, a dar sinais disso mesmo. Se muitos jovens eram tipicamente atraídos por utopias socialistas, outros são, agora, atraídos por demagogias populistas tão ou mais perigosas do que aquelas.
Por tudo isto, é crucial promover a cultura democrática, no Portugal de hoje. Promover as virtudes da democracia liberal em todos os níveis – social, político e económico. Ensinar aos jovens que o progresso vem do debate informado, racional, sereno e tolerante entre pessoas e grupos com ideias diferentes. Ensinar que a diversidade é dos maiores valores deste mundo, e que o respeito pelo outro é um pilar essencial duma sociedade aberta e que progride.
Ensinar aos jovens que o progresso vem do debate informado, racional, sereno e tolerante entre pessoas e grupos com ideias diferentes. Ensinar que a diversidade é dos maiores valores deste mundo, e que o respeito pelo outro é um pilar essencial duma sociedade aberta e que progride.
Ensinar que é necessário devolver poder aos cidadãos e aos grupos sociais intermédios, para que a sociedade e a economia possam progredir.
Ensinar aos jovens que a propriedade privada, a livre iniciativa e a concorrência são o melhor garante do progresso material da sociedade. Ensinar-lhes que a liberdade económica e a minimização do estado não são incompatíveis com políticas sociais que garantam mínimos de justiça. Ensinar-lhes que é crucial a igualdade de oportunidades e a liberdade de iniciativa, para que haja “elevador social”.
Compete aos cidadãos (à “sociedade civil”) dinamizar instituições e ações capazes de reforçar – eu diria criar – uma cultura verdadeiramente democrática em Portugal. Um exemplo notável disto mesmo é o recentemente criado Instituto + Liberdade. Se movimentos como este cumprirem a sua missão, Portugal poderá ter um futuro bem melhor do que o que neste momento se pode prever. E voltará a subir nos índices e rankings de liberdade e democracia.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.