O dia em que dissemos a nossa primeira palavra é um desses momentos a que temos acesso através da memória comovida dos nossos pais. Depois deste primeiro esforço, vamos aprendendo o mundo nas palavras que ouvimos, imitamos e, pouco a pouco, vamos compreendendo.
Os encontros e desencontros, as feridas e as paixões, os livros e as paisagens da vida vão abrindo as palavras, rasgando nas suas entranhas novos sentidos. E assim, cada silaba se faz história na nossa vida, cada letra soletrada vibra em nós com diferente intensidade. Neste caminho, há palavras que vamos guardando com mais cuidado, há palavras que procuramos não desperdiçar.
É assim na nossa história pessoal, é assim na nossa história em comum. Sabemos, sem que ninguém nos diga, o peso e a força que a História, feita de sonhos e dramas, de luas alcançadas e de estilhaços que matam, foi dando a cada palavra. Mas, às vezes, das vozes sobrepostas do espaço público, do desejo de se fazer ouvir para lá da confusão, chegam-nos palavras que não deviam ser desperdiçadas, palavras que deviam ser respeitadas.
É legítimo criticar leis, instituições ou pessoas. É legítimo persuadir… mas devemos procurar fazê-lo sem banalizar palavras que pela dor ou pelo espanto que invocam nos pedem recato e pudor. Não se trata de ser politicamente correto ou incorreto. Não se trata de ameaçar a liberdade de expressão ou criação. Trata-se de cuidar das palavras como um jardineiro fiel e paciente. Trata-se de cuidar do seu significado, do seu sentido mais profundo.
Banalizar palavras como tortura e amor, fascismo e esperança, mal e verdade, às vezes, pode significar retirar a essas palavras a capacidade de nos espantarem ou escandalizarem, de vibrarem nas nossas entranhas. Pode significar transformar as palavras em ruído, secá-las como árvores abandonadas…
É assim na nossa história comum, é assim na nossa história pessoal e familiar.
Vivemos num tempo em que as palavras perderam matizes, em que tudo é facilmente absolutizado ou vilipendiado. Na educação podemos ter também a tentação de utilizar palavras ou expressões definitivas: “se fazes isso nunca mais gosto de ti”. Esse não é um bom caminho para educar para o diálogo, nem para desafiar a polarização que tanto nos inquieta. No modo como se discute ou apenas se conversa em cada uma das nossas casas é preciso estar vigilante para chegar demasiado depressa a polarizações sem futuro, a argumentos definitivos ou a acusações “sem volta atrás”.
Adaptado pelo autor de um artigo publicado originalmente no essejota.net, site atualmente indisponível.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.