Crises bancárias em Portugal: problemas para todos, custos para todos?

Foi preciso um grande devedor à banca ir ao Parlamento comportar-se de forma desavergonhada e insultuosa, para que as verdadeiras origens de muitas dificuldades da banca portuguesa não mais pudessem ser escondidas.

Costuma dizer-se que “quando alguém deve mil e não consegue pagar, tem um problema; mas quando alguém deve mil milhões e não consegue pagar, quem tem um problema é o seu credor.”

Os credores são tipicamente bancos. Então, quando alguém deve mil milhões e não paga, os accionistas dos bancos têm um problema. Sim, mas não só: os depositantes nos bancos – e nos outros bancos com os quais aqueles se relacionam – também têm um problema; por isso, se o problema é mesmo sério o Estado intervém para garantir o (bem comum associado ao) bom funcionamento do sistema de pagamentos (ou seja, para proteger as poupanças de depositantes e o fluxo normal de pagamentos e recebimentos entre quem negoceia). E, no limite, acciona-se o fundo de resolução, que é na verdade propriedade do Estado e por isso maioritariamente financiado pelos contribuintes.

Numa palavra, porque as dificuldades bancárias, quando muito relevantes, prejudicam toda a sociedade, entende-se que toda a sociedade deve ajudar a pagar a sua resolução. Mas nem todas as dificuldades bancárias são iguais. É esse o ponto deste artigo.

Nos últimos dez anos, uma boa parte do aumento de impostos (ou da dívida pública) deveu-se a injecções de capital em alguns bancos e à resolução de outros. No início, era a crise financeira internacional; depois, começámos a saber de casos de gestão fraudulenta (BPP, BPN); e começou a invocar-se gestão incompetente (BCP).

O XIX Governo Constitucional (junho 2011—outubro 2015) geriu o Programa de Assistência Económica e Financeira (2011—2014) , que incluia um fundo externo especial de auxílio ao saneamento da banca. Dos bancos grandes, só o BES não solicitou ajuda – e os observadores atentos sabiam porquê. O Governo teve a coragem de deixar cair esse verdadeiro banco-do-regime, a maior fraude do sistema bancário nacional, que com uma complexa teia de operações ilegais servia alguns políticos, empresários e gestores.

Entretanto, revelaram-se as dificuldades do próprio banco do Estado (CGD), e os contribuintes foram chamados à sua recapitalização. Já não era mais possível evitar o escrutínio das decisões de gestão danosa na CGD (outros casos, como o do Montepio, são apesar de tudo menores em escala, escândalo e consequências).

Até que Berardo, tão deficitário em competências sociais como excedentário em assessoria jurídica, se riu na cara dos deputados.

Entrou-se num nova fase, quando se começou a perceber que afinal o grosso dos problemas vinha de um numero muito reduzido de grandes devedores incumpridores. Afinal o problema não tinha sido exógeno (crise internacional, crise da dívida pública), e por isso havia que apurar responsabilidades individuais. Chamou-se bancários, gestores e supervisores ao Parlamento. Quase todos fizeram figuras tristes – não se lembravam, não tinham ideia, não sabiam, não era da sua competência… Começou então a chamar-se os grandes devedores.

Até que Berardo, tão deficitário em competências sociais como excedentário em assessoria jurídica, se riu na cara dos deputados. Lembra-se bem de tudo; não é ele que deve mil milhões, apesar de ter sido ele a pedi-los; mesmo que devesse não poderia pagar, porque não tem património – apesar de viver principescamente; fez o favor de disponibilizar ao público a sua colecção de arte, a expensas do Estado – colecção que contudo não é sua senão no nome e (pasme-se) no poder de decisão; afinal foi ele que fez o favor de tentar ajudar os bancos quando há dez anos pediu crédito para comprar outros bancos, dando como garantias pouco mais do que ar.

E então, de repente, o Rei vai nú. A imprensa e os analistas já não podem calar a verdade (que muitos deles conheciam perfeitamente), até porque se seguirão inquéritos a outros grandes devedores. Sucedem-se, nestas últimas semanas, artigos com “revelações” bem detalhadas – negócios, empréstimos, garantias, até legislação feita sob encomenda.

Afinal, tudo começou ainda antes da crise financeira. Durante os XVII e XVIII Governos (março 2005—junho 2011), criou-se uma teia de cumplicidades entre políticos, empresários e gestores  – aparentemente centrada no Primeiro-Ministro, no BES e num punhado de gestores de empresas dominantes em sectores especialmente rentáveis (energia, telecomunicações). Executaram-se operações visando “maquilhar” as contas de bancos, controlar alguns bancos e empresas privadas, proteger da concorrência outras empresas e os respectivos accionistas e gestores, e – segundo tudo indica – enriquecer ilicitamente uma “elite” de gestores protegidos, empresários sem capital, e políticos sem moral.

Alguns dos actores políticos da época ainda tentam esboçar justificações. A que me parece mais patética é que “na altura se entendia ser necessário tentar manter centros de decisão no país”. Uma menos risível é que “era necessário assegurar que a banca comprava a dívida pública” (o que me faz lembrar as nacionalizações de 1975…).

Para que tudo isto tivesse sido possível, foi necessária muita “incompetência”: na produção de legislação (convenientemente) omissa, opaca, quando não desastrada

Infelizmente, tudo me soa a falsas explicações para o que em boa verdade é compadrio, corrupção, enriquecimento da nova “elite” – directamente (dada as suspeitas de comissões ilícitas para políticos) e indirectamente (financiando um Estado demasiado grande, que serve interesses da elite política e de franjas privilegiadas da economia, em especial parte da função pública).

Para que tudo isto tivesse sido possível, foi necessária muita “incompetência”: na produção de legislação (convenientemente) omissa, opaca, quando não desastrada; na negociação em nome do Estado sem qualquer preocupação na defesa do interesse comum; na concessão de créditos sem garantias adequadas nem propósitos claros; nas débeis auditorias internas e externas dos bancos, e na supervisão bancária por um míope regulador; na manutenção duma lentidão e ineficiência extremas quer na investigação quer no julgamento dos casos de suspeita de crime.

Entretanto, os contribuintes foram chamados a pagar, e continuarão a ser chamados a pagar durante muito tempo, tal o nível que a dívida pública alcançou. O mínimo a que têm direito é ver todos estes casos devidamente investigados e julgados. O mínimo a que têm direito é ver os culpados devidamente identificados e punidos. E têm direito a que tudo isso aconteça em tempo útil. Pergunto-me quando haverá a coragem necessária para virar a página da corrupção; quando a Procuradoria Geral da República e o Ministério Público terão vontade e meios necessários para virar a página da inacção.

Os contribuintes portugueses têm revelado uma capacidade de sacrifício notável. Afinal, nunca pagaram tantos impostos, para um Estado que nunca os serviu tão mal. Uma coisa seria pagar o saneamento de bancos afectados pela crise financeira internacional e por excessos de endividamento da própria população. Outra coisa é pagar para que uma nova “elite” se aproprie ilicitamente de recursos que são escassos neste ainda tão pobre país. Não podemos nem devemos suportar essa injustiça: as crises bancárias afectam todos, mas nem todas as crises bancárias devem ser pagas por todos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.