No início desta Quaresma de 2025, em ano de Jubileu da Esperança, não deixa de ecoar em mim a questão com a qual o Papa Francisco encerra a sua mensagem para este tempo tão crucial na vida dos cristãos: “Vivo concretamente a esperança que me ajuda a ler os acontecimentos da história e me impele a um compromisso com a justiça, a fraternidade, o cuidado da casa comum, garantindo que ninguém seja deixado para trás?”.
Confesso que a minha esperança vacila, e bastante, ao procurar ler os acontecimentos do momento atual da história que estamos a viver. São tantos os conflitos mortíferos em curso, da maioria dos quais pouco se fala, e ainda menos se age para lhes pôr cobro: Congo, Sudão, os países do Sahel, Moçambique, Terra Santa, Ucrânia, Myanmar… A situação degradante da miséria mais abjeta em que vive grande parte da humanidade, multidões de jovens de tantas nações esmagados pela pressão da sobrevivência e sem a bússola de um rumo que os motive… A nova corrida aos armamentos que tantos senhores e senhoras com ar douto e que se pretende muito responsável nos repetem todos os dias ser urgente, inadiável, irrenunciável… O mais absoluto desrespeito pelo direito internacional e pelas instituições internacionais que tem vindo a ser demonstrado pelas lideranças das maiores potências, logo imitado por quem julga não poder sobreviver tomando outras opções, ou se procura colocar em bicos de pés para parecer bom aluno dos grandes e poderosos… A crise estrondosa do multilateralismo, que aparenta estar a pôr fim ao período histórico que se abrira no pós-II Guerra Mundial, em favor das decisões unilaterais com base na força e nas alianças de interesses mesquinhos… A lenta, mas aparentemente inexorável, morte dos regimes democráticos, à medida que apodrecem por dentro as suas instituições… A era do império do algoritmo, da futilidade das redes sociais, do glamour instantâneo, do voyeurismo insensato e do share irrefletido… Confesso, repito, que sinto a minha esperança a vacilar ao ler todos estes acontecimentos.
A tudo isto veio juntar-se, nas últimas semanas, a grave crise da cooperação internacional, em resultado dos cortes brutais anunciados, ou já em curso, pelos governos de vários dos países mais ricos do mundo, após as decisões drásticas anunciadas por aquela que é considerada a maior de todas as potências. As sirenes de alarme não cessam de soar por parte das organizações humanitárias. Cito apenas o recente comunicado da Caritas Internationalis: “A Caritas Internationalis está chocada com as decisões destes governos de reduzir os seus orçamentos para a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) a favor do aumento das despesas com a defesa. Esta mudança terá consequências devastadoras para milhões de pessoas em todo o mundo, impulsionando a migração forçada e minando a própria estabilidade que estes países procuram proteger. Mais uma vez, as contas das nações mais ricas estão a ser equilibradas à custa das pessoas mais pobres”.
Nos últimos dias, não cessaram de me chegar, e aos colegas da Secção Escuta e Diálogo do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, inúmeros gritos de socorro: programas a serem encerrados num estalar de dedos, despedimentos em massa, proibição de aceder aos locais de trabalho e de assistência aos mais vulneráveis… Uma autêntica calamidade se avizinha pelo corte total ou grande redução de muitos programas na área da saúde.
Nos últimos dias, não cessaram de me chegar, e aos colegas da Secção Escuta e Diálogo do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, inúmeros gritos de socorro: programas a serem encerrados num estalar de dedos, despedimentos em massa, proibição de aceder aos locais de trabalho e de assistência aos mais vulneráveis… Uma autêntica calamidade se avizinha pelo corte total ou grande redução de muitos programas na área da saúde. Apenas alguns exemplos: as terapias antirretrovirais dos pacientes que vivem com a SIDA, as campanhas de vacinação infantil, os programas de saúde materno-infantil… Mas também programas de assistência alimentar a populações especialmente vulneráveis, como sejam aquelas em países em conflito, as populações deslocadas, as que vivem em campos de refugiados, a recuperação de crianças desnutridas…
Como alguém dizia há dias numa sessão de escuta com contactos do Dicastério que operam na área da saúde em diversos países de África: “Não existe uma estratégia possível imediata de atenuação destes efeitos por via da angariação de fundos, uma vez que não existem doadores que possam colmatar uma tão grande lacuna a curto ou a médio prazo”. O resultado vai ser, já está a ser: as instituições, públicas e privadas, as organizações de cooperação, as agências humanitárias, os seus técnicos e agentes – os que permanecerem! – terão, diariamente, de fazer escolhas difíceis e brutais acerca da utilização dos parcos orçamentos que estarão disponíveis. Em última análise, quando falamos de programas de saúde ou de assistência alimentar: a quem será concedido viver e a quem não. Simplesmente porque a escala dos serviços disponíveis não pode ser mantida em função dos cortes orçamentais anunciados e já a ser implementados.
“Graças ao amor de Deus em Jesus Cristo, somos conservados na esperança que não engana”. Que as palavras do Papa na sua Mensagem para a Quaresma nos ajudem a não ceder à tentação do desânimo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.