Em 1522, fruto da conversão e de uma peregrinação contínua, Inácio de Loiola passa a ser um “homem novo” (Ef 4, 22-24) e a ver todas as coisas como novas. Transforma-se no “homem interior” (2 Cor 4, 16-18). A sua existência passa a ser especialmente pautada pelo ofício de consolar e pelo testemunho da misericórdia. Rasga-se a Inácio de Loiola um novo horizonte pascal, que se reflete no texto conclusivo do livro dos Exercícios Espirituais (EE), intitulado “Contemplação para alcançar amor” (EE 230- 237). Este texto permanece de grande atualidade para o nosso tempo.
Inácio de Loiola (1491-1556) nasce num tempo de transição entre a idade média tardia e o princípio da modernidade. A navegação marítima passa a ligar os diferentes continentes, dando início à globalização. Os grandes centros urbanos desenvolvem-se a um ritmo crescente. A experiência e o método passam a estar na base do conhecimento, o que se reflete no escrito mais conhecido de Inácio, os Exercícios Espirituais.
O tom e o modo deste novo horizonte que se rasga a Inácio de Loiola é claramente pascal e pentecostal. A Páscoa não é uma lenda que nos aconchega a alma, não é uma narrativa dissociada da realidade, não é um catecismo aprendido de memória, não são ritos associados a um tempo irremediavelmente perdido. A Páscoa é um novo modo de ver e sentir, de estar e agir, no qual descobrimos uma nova identidade, genuína e profunda. É um desafio a deixar cair a máscara e os artifícios do Ego. É um apelo à experiência interior da radicalidade – a vivência do sentir-se livre, “indiferente” (EE 23). A Páscoa é, assim, uma nova perspetiva antropológica e existencial, individual e comunitária. A Páscoa é vida em Deus e, vida em abundância. E, consequentemente, a Páscoa é profundamente dinâmica.
Mas que novo horizonte é este, esboçado na “Contemplação para alcançar amor”? Os EE distinguem-se de qualquer outro tipo de exercícios, pois visam a colaboração com a graça e não a conquista de um troféu. No verão de 1522, a cerca de dois quilómetros da pequena cidade de Manresa (Catalunha), Inácio encontrava-se no cimo de uma ribanceira e lá no fundo corria o rio Cardoner. Esta geografia permitia a Inácio disfrutar de um vasto horizonte. Subitamente, experimentou uma profunda transformação do “entendimento”. A sua Autobiografia dedica dezassete linhas a esta graça, sendo o termo “entendimento” recorrente por seis vezes. Fruto desta iluminação, Inácio diz que passou a ser um homem novo e a ver todas as coisas como novas. Mais ainda, passou a ter uma perspetiva integrada dos mais variados domínios do conhecimento. Esta iluminação do entendimento nada tem a ver com o gnosticismo, pois tem na base o afeto à pessoa do Crucificado-Ressuscitado.
Na “Contemplação para alcançar amor” Inácio procura explicitar esse novo horizonte, profundamente pascal, desenvolvendo-o em quatro pontos. Na perspetiva de Josep Rambla SJ estes pontos podem ser apresentados do seguinte modo: Primeiro ponto, “a vida cristã é graça”. Consequentemente, procuremos sentir-nos permanentemente agraciados pelos bens da criação, pelos bens da redenção, pelos dons pessoais e por este Deus que deseja dar-Se-me. E dar-Se a cada um de nós.
Primeiro ponto, “a vida cristã é graça”. Consequentemente, procuremos sentir-nos permanentemente agraciados pelos bens da criação, pelos bens da redenção, pelos dons pessoais e por este Deus que deseja dar-Se-me. E dar-Se a cada um de nós.
Segundo ponto, “a vida cristã é um encontro”. Vimos atrás este dado incrível da revelação: Deus dá-Se-me! E dá-Se a cada um de nós! Deus habita em todas as criaturas, mas de um modo especial no ser humano, fazendo dele templo do Espírito Santo. Jesus fala à Samaritana num novo culto que não tem lugar nem em Garizim (monte sagrado para os samaritanos) nem em Sião, no templo de Jerusalém (Jo 4). Trata-se de um novo culto, em espírito e verdade, fruto do encontro com este Deus que habita o nosso próprio ser, se nos dispusermos a acolhê-Lo.
Segundo ponto, “a vida cristã é um encontro”. Vimos atrás este dado incrível da revelação: Deus dá-Se-me! E dá-Se a cada um de nós! Deus habita em todas as criaturas, mas de um modo especial no ser humano, fazendo dele templo do Espírito Santo.
Terceiro ponto, “viver em esperança”. Poderemos ficar com a sensação que cada novo dia é um milagre, já que a humanidade tem hoje a possibilidade de se auto destruir. Deus não apenas habita, mas trabalha também em cada criatura. Deus habita e trabalha. A presença de Deus é dinâmica. “O meu Pai trabalha continuamente e Eu também” (Jo 5, 17). Daí a esperança que se acende relativamente ao futuro, já que Deus age na Criação e na História, e não se limita a atirar com cada ser para a existência, a criar por criar. O homem é criado para viver em Deus (EE 23).
Terceiro ponto, “viver em esperança”. Poderemos ficar com a sensação que cada novo dia é um milagre, já que a humanidade tem hoje a possibilidade de se auto destruir. Deus não apenas habita, mas trabalha também em cada criatura. Deus habita e trabalha. A presença de Deus é dinâmica.
Quarto ponto, “sensíveis à diafania de Deus”. Deus manifesta-se na Criação e na História. A manifestação diáfana de Deus pode ocorrer em cada ser humano, através de ti, de mim, de cada um de nós, dispondo-nos a acolher os dons do alto (Tg 1, 17) e, consequentemente, vivendo do encontro com este Deus que nos habita. Então, cada um que se deixa habitar, pode ser presença e testemunho de Deus no meio do mundo, ao jeito de Jesus que, tal como no episódio do lava-pés, testemunha uma liderança sui generis. Se nos formos esvaziando e acolhendo os dons do alto, então podemos ser sucessivamente poder de Deus (exercendo uma liderança ao jeito de Jesus), justiça de Deus, bondade de Deus, piedade de Deus e, finalmente, misericórdia de Deus no meio do mundo.
Quarto ponto, “sensíveis à diafania de Deus”. Deus manifesta-se na Criação e na História. A manifestação diáfana de Deus pode ocorrer em cada ser humano, através de ti, de mim, de cada um de nós, dispondo-nos a acolher os dons do alto (Tg 1, 17) e, consequentemente, vivendo do encontro com este Deus que nos habita.
A liderança cristã é explicitada na justiça, na bondade, na piedade e na misericórdia. Em última instância a liderança é sinónimo de misericórdia. A mística pressupõe a primazia da presença e ação de Deus na vida, sendo testemunhas da Sua misericórdia. Antes de entrar na “Contemplação para alcançar amor”, é dito que o específico do Ressuscitado nas aparições é o ofício de consolar (EE 224). Consequentemente, também tem que ser esse o distintivo de cada discípulo do Ressuscitado e testemunha da ressurreição. Na “Contemplação para alcançar amor”, Inácio acrescenta ao ofício de consolar o testemunho da misericórdia. Os EE são uma escola da misericórdia. Antes de mais abrem-nos à misericórdia de Deus. O Senhor, na Sua infinita misericórdia, deixa-nos desconcertados! Em diversas ocasiões da história de cada um de nós, Ele segurou-nos, impedindo-nos de cair ou mesmo foi buscar-nos lá ao fundo. No final dos EE convida cada um a ser no mundo diafania dessa misericórdia.
A perspetiva pascal de Inácio surge numa época de mudanças profundas – o início da globalização, a reforma, a contra reforma – em que havia que discernir a direção a seguir para se pôr ao serviço do Senhor.
Tal como a Inácio de Loiola no século XVI, também no nosso tempo os seres humanos e a Igreja se vêm confrontados com profundas mudanças – as alterações climáticas, a pandemia, a guerra, os diversos abusos na Igreja e o grande desafio de construirmos um caminho Sinodal – que requerem um exigente processo de discernimento.
O Papa Francisco tem procurado mostrar, profeticamente, o rumo a ser tomado pela Igreja e pela Humanidade, no nosso tempo. As encíclicas do seu pontificado, nomeadamente Laudato Si’ (Sobre o cuidado da casa comum) e Fratelli Tutti (Sobre a fraternidade e a amizade social), são um testemunho do desejo da construção de um novo horizonte pascal que o Senhor propõe hoje à Igreja e ao Mundo. Mediante a comunhão com o Pai pelo Filho e no Espírito Santo, cada um de nós é chamado a levar aos outros este novo horizonte, a Páscoa, mediante o ofício de consolar e uma liderança pautada pela misericórdia.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.