Por todo o mundo, podemos identificar estruturas desumanizantes e a opressão causada pela pobreza e pela discriminação, bem como forças que tendem a contrariá-las. Não poucas vezes este confronto resulta em conflito, por vezes inevitável, nunca desejável, e em todas as ocasiões semeador de novas injustiças. Quando assumimos que o conflito é o caminho, arriscamos entrar numa lógica de destruição mútua, em que a violência despoletada, em palavras ou em ações, manchará a causa mais nobre.
A trágica morte de George Floyd, à qual se seguiram tumultos e pilhagens, é o mais recente exemplo da espiral de violência, corajosamente denunciada pelo seu irmão Terrence Floyd. Quando são traçadas linhas na areia para separar bons de maus, puros de impuros, inevitavelmente a complexidade da realidade é perdida entre os grãos, e a única coisa que resta é o círculo vicioso de agressão e reação.
De certa forma, é esta a visão que está por detrás de todo o edifício marxista: a história resume-se à luta de classes, ao conflito, e há que combater a injustiça que se abate sobre os oprimidos. Mas não é exclusiva do marxismo, pois podemos observar a mesma estrutura de pensamento nos regimes fascistas do século XX, bem como numa recente massificação desse discurso no espectro político conservador: identificação de um grupo opressor ou transgressor, o qual se deve rejeitar com veemência numa escalada constante de conflito.
Assistimos a um jogo de espelhos, que inevitavelmente está destinado a terminar com vidro espalhado pelo chão, num mundo em cacos. Da minha parte, gostaria de propor uma alternativa: o imperativo do amor compassivo, uma proposta do teólogo jesuíta Lonergan, da qual podemos encontrar ecos nas intuições do Papa Francisco.
Lonergan defende que a conversão afetiva, isto é, uma inclinação do coração à misericórdia e à justiça, deve anteceder a conversão ética, centrada no juízo do que é certo e errado.
Lonergan defende que a conversão afetiva, isto é, uma inclinação do coração à misericórdia e à justiça, deve anteceder a conversão ética, centrada no juízo do que é certo e errado. A conversão ética pode conduzir-nos primeiramente à indignação, que mesmo quando justificada, será um ponto de partida indesejável para começar a construir alternativas. A proposta de Lonergan, centrada no afeto, pretende desarmar os mecanismos de ressentimento e violência despoletados pela indignação, e permite sonhar uma realidade mais próxima das promessas do Reino de justiça e paz, em que vítimas e perpetradores têm direito à sua voz e à sua humanidade.
Não pretendo inocentar opressores nem deslegitimar oprimidos, nem defendo que recalquemos os nossos sentimentos. Considero sim que todos têm a mesma dignidade, e que partindo da compaixão pelo outro, podemos promover a justiça sem desumanizar. Creio que para contribuir para relações justas, educar o coração para a escuta é o passo fundamental, e tal exige de nós descobrir a força da compaixão para com o outro.
De certa forma, todos nos tornámos discípulos de Kant, acreditando que se começarmos por buscar a verdade descobriremos o bem, chegando desta forma à plenitude de vida, à vida bela; isto é: busca a verdade, descobre o bem, e encontrarás a beleza. Eu proponho-vos a inversão que o teólogo Balthasar faz, começando pelo coração em lugar da cabeça: descobrir o belo, o que me inspira a mais, enquanto arrisco percorrer o caminho do bem, na esperança de que a verdade se mostre. Este caminho despoleta a força do testemunho, e não é coincidência que o Papa Francisco, na Laudato Si’, além de enumerar medidas para proteger a casa comum, nos aponte um exemplo que nos espicaça a imaginação evangelizadora e desperta a força da conversão: Francisco de Assis.
O imperativo do amor compassivo deve levar-nos também a quebrar a ditadura da linguagem económica: em lugar da categoria «pobre», deveremos talvez optar por nos referirmos a uma opção preferencial pelos excluídos. Formular a opção preferencial da Igreja desta forma, permite abranger os que são oprimidos pela pobreza, mas também incluir os que são discriminados tendo em conta a sua religião, nacionalidade, género, orientação sexual, e ainda os que se encontram em situações de exclusão por força de uma doença, de uma guerra ou catástrofe ambiental, ou por simplesmente se encontrarem sós, por não terem onde viver, por não terem laços familiares ou de amizade.
Em suma, creio que a atitude fundamental de amor compassivo nos leva a uma opção preferencial por aqueles que sofrem, olhando cada um como indivíduo no seu contexto, a quem é devido justiça pelo que padece e pelo que faz. Mais importantemente, creio que um horizonte alargado por esta atitude fundamental poderá evitar uma próxima Shoah ou um outro arquipélago de gulags.
Fotografia de: Ramon Kagie – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.